O JOGO recorda a entrevista feita em fevereiro a Fernando Santos, na rubrica "Só Conversa", a propósito do aniversário de O JOGO. Uma conversa descontraída que rapidamente passou para outros temas: dos tempos de miúdo na Penha de França à sua fé incondicional em Deus e aos pedidos que Lhe faz.
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Se houvesse um curto-circuito na Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Santos diz que o resolveria sem problema. Afinal - justificou - ainda trabalhou como engenheiro eletrotécnico durante 17 anos. Perguntei, entretanto, como deveria tratá-lo. Disse-me que bastava Fernando.
O JOGO faz 31 anos. Lembra-se de o jornal ter aparecido?
Claro. Era um jornal inovador, até a própria paginação era diferente, mas naquela época era difícil competir com "A Bola". Portanto, todos os jornais tiveram alguma dificuldade no início do seu percurso e alguns ficaram pelo caminho.
Começou a ler jornais desportivos muito cedo?
Desde menino. Sou do tempo em que às 18h00 ia com os meus amigos comprar o "Diário Popular", o "Diário de Notícias" ou a "Capital" ao Largo do Relógio, ao pé do aeroporto de Lisboa. Na altura só se ouvia os relatos pela rádio e nesses jornais já vinham os resultados de todos os jogos do país. Às segundas-feiras, o meu local de eleição era o barbeiro, pois ele tinha o jornal.
Ouvi dizer que a sua mãe é uma grande leitora dos jornais desportivos...
Lê os jornais de uma ponta à outra. Eu também os leio, todos os dias. Normalmente começo pelo fim, gosto de ler as modalidades, o internacional e as fofocas.
Mas lê tudo, como a sua mãe, ou seleciona?
Todas as análises que já vêm enviesadas, em que a pessoa vai sempre dizer mal mesmo que esteja bem, ou bem mesmo que esteja mal, essas não leio. Mas leio com muita atenção tudo aquilo que me possa ajudar no meu trabalho, mesmo críticas negativas.
Se fosse diretor de um jornal desportivo, o que alterava?
Erradicava a falta de isenção, provocada porque quem escreve gosta mais do Manuel do que do António, por exemplo. Isso não é correto. E outra coisa: era bom que os jornalistas tivessem mais acesso às tomadas de decisão. Durante muitos anos, nos tempos do Estrela, do Estoril e início do FC Porto, eu tinha conversas informais com os jornalistas, pois isso permitia-lhes perceber melhor as decisões que tinham sido tomadas e escrever com maior conhecimento de causa. Agora, todas as semanas, querem-me pôr um jogador na Seleção [risos]. É normal, fazem o vosso papel.
O último foi o Renato Sanches. Faz parte dos seus 40 pré-eleitos?
Sim. É normal.
Ainda nem às seleções jovens foi.
O Nené chegou à Seleção Nacional sem sequer ter sido júnior, juvenil ou ter estado nas seleções. A regra não é essa, mas há sempre exceções como foi Nené ou o é, agora, Renato Sanches. Ele está nos 40, mas isso não quer dizer que seja chamado já.
Anda de olho nele desde que ele passou a jogar na equipa principal do Benfica?
Já tinha algumas informações sobre o jogador antes disso. Mas, claro, uma coisa é ter informações e outra é ele começar a jogar a um determinado nível. Mas é preciso tempo! Há sempre jogadores que estão muito bem, prometem muito, e depois não dão nada.
O Benfica joga esta noite [Benfica-FC Porto], dia em que estamos a fazer a entrevista, e sei que vai ao estádio ver a partida. Será mais um momento para observar Renato Sanches?
Vou ao jogo porque é importante. Se um jogador ainda está nesse patamar, de ser observado por mim, então é porque não faz parte do meu lote de possíveis eleitos. Para esses, já não preciso de saber se passa, dribla, domina ou chuta bem a bola. Isso já sei!
Que conselho dá ao Renato Sanches para lidar com todo o sucesso e mediatismo de que tem sido alvo? Foi já inclusive manchete do "As".
O Renato tem uma pessoa que está sempre sentada com ele no banco, que se chama Shéu Han. Pergunte-lhe o que o Eusébio fez para ser o que foi e nunca deixar de sê-lo. Se ele perceber isso, e o Shéu pode contar-lhe isso muito bem, vai ter tudo garantido e o futuro dele vai ser brilhante.
Vai ter muitas opções no meio-campo para levar ao Europeu...
Eu já contei quantos médios vocês dizem que devem ir: são 12. Talvez levemos os 12... [risos] Têm é de me explicar como o vou fazer, se levo guarda-redes ou não... Estou a brincar! Todos os 12 médios de que se fala têm talento e fazem parte dos 40 pré-selecionados. Mas só vão ao Europeu seis ou sete no máximo. Percebo as vossas perguntas e respondo sem problemas, as pessoas falam, mas sou eu que vou decidir.
O que vai fazer com que decida por uns em detrimento de outros?
Depende da forma como a equipa vai jogar. Isso é garantido! E isso é que vocês às vezes não entendem ou não querem ver. Todos estão num nível elevado, mas vou escolher os que entender que se encaixam melhor no modelo de jogo. Sei que vai haver quem critique as minhas escolhas. É natural. Um jogador que fique de fora da convocatória para o Europeu até pode ser ligeiramente superior a outro que foi escolhido, mas não faz o mesmo.
Suponho que não irá fazer uma revolução na forma como a equipa tem jogado...
Seguramente que não.
Será o Fernando Santos a ter a última palavra na escolha dos convocados para o Campeonato da Europa. Em que momentos ou locais toma as suas grandes decisões?
Ouço sempre os meus colaboradores, mas se há uma decisão final que tenho de tomar, preciso de estar sozinho. Às vezes decido quando estou na pesca ou no carro a conduzir.
Na Igreja não?
Não. A igreja é para outras coisas. Falo com Deus, todos os dias, mas Ele tem mais que fazer do que estar a preocupar-se com essas tomadas de decisão. Decido muitas vezes no meu escritório, ponderando tudo muito bem. Posso pedir-Lhe ajuda: "dá-me aqui um bocado de discernimento para eu tomar uma decisão correta". Isso se calhar faço.
Já está nervoso com o aproximar da fase final?
Há sempre um momento em que sentimos borboletas no estômago. Quanto mais próxima estiver a competição, mais a borboleta vai mexer. Há sempre um momento em que achas que podias ter feito mais ou que te interrogas como é que vai resultar tudo o que preparaste. Aí vai mexer... O primeiro jogo é um momento desses.
Portugal tem jogos amigáveis no final de março e a 14 de junho começa a disputar o Europeu, na França. Como é atualmente o seu dia-a-dia?
Não são todos os dias iguais e estão muito centrados no futebol. Normalmente levanto-me cedo, nunca depois das 9h00. Tomo o pequeno-almoço em casa com a minha mulher e os meus quatro cães: Guti, Scotie, Mancha e Rafa. Dormem connosco no quarto e todos os dias brinco com eles. À segundas e terças-feiras, costumo ver os jogos do fim de semana: saber o que aconteceu, como os jogadores estiveram. Eu e a minha equipa técnica trabalhamos em conjunto. Vejo também os relatórios dos meus colaboradores, eles vão ver muitos jogos em Portugal e no estrangeiro. Nesta fase, já estamos a preparar o trabalho para junho, estamos a ver jogos em catadupa dos adversários da fase de grupos [ndr: Islândia, Áustria e Hungria], mas também dos que pensamos que nos podem vir a sair a seguir. E já tivemos de meter pelo meio os nossos adversários ainda na fase de preparação [ndr: Bulgária, Bélgica e Noruega].
Quantas horas trabalha por dia?
Muitas. Mas não é regular, como num clube em que não tens praticamente tempo e existe sempre pressão. Na Seleção Nacional, existem momentos de pico, incomparavelmente mais intensos. Mas no dia-a-dia, às vezes entro na federação às oito da manhã e estou reunido com a equipa técnica até às seis, sete ou oito da noite. Em outros dias, entro às nove ou às dez, saio para almoçar e depois, à tarde, faço algumas coisas em casa e falo por telefone. Não tenho obrigação de vir à federação todos os dias, mas venho. Está cá sempre alguém da equipa técnica e eu também vou estando.
Qual o papel da sua mulher neste dia-a-dia?
Ela é que segura as pontas. Ela é a base disto tudo.
Em que parte é que ela entra quando faz o planeamento do seu dia?
Esse é o problema dos casais, têm de marcar datas e horas para tudo. A minha mulher está sempre no meu dia. Estamos juntos há 44 anos, 37 dos quais casados.
A CARTA QUE FERNANDO SANTOS ESCREVEU A 18 DE JUNHO A AGRADECER A DEUS
"Em primeiro lugar e acima de tudo, quero agradecer a Deus Pai por este momento e tudo aquilo da minha vida. Deixar uma palavra especial ao presidente, dr. Fernando Gomes, pela confiança que sempre depositou em mim. Não esqueço que comecei com um castigo de oito jogos pendentes.
A toda a direção e a todos os que viveram comigo estes meses. Aos jogadores, dizer mais uma vez que tenho um enorme orgulho em ter sido o seu treinador. A estes e aqueles que aqui não puderam estar presentes. Também é deles esta vitória. O meu desejo pessoal é ir para casa. Poder dar um beijo do tamanho do mundo à minha mãe, à minha mulher, aos meus filhos, ao meu neto, ao meu genro e à minha nora e ao meu pai, que junto de Deus está certamente a celebrar.
A todos os amigos, muitos deles meus irmãos, um abraço muito apertado pelo apoio mas principalmente pela amizade. Por último, mas em primeiro, ir falar com o meu maior amigo e sua mãe. Dedicar-Lhe esta conquista e agradecer-Lhe por ter sido convocado e por me conceder o dom da sabedoria, perseverança e humildade para guiar esta equipa e Ele a ter iluminado e guiado. Espero e desejo que seja para glória do Seu nome."
(Entrevista publicada a 21 de fevereiro de 2016)