O Estágio do Jogador, para futebolistas à procura de clube, a decorrer no Jamor, serviu de pretexto para uma conversa onde Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato de Jogadores, falou do camisola 10 que há dentro de si, dos tempos em Bragança e do seu lado mais intimista
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Diz que no desafio entre Portugal e a Croácia, estava sentado mesmo ao pé de Marques Mendes e levantou-o quando Ricardo Quaresma marcou o golo da vitória portuguesa. "É violentíssimo estar num jogo e não poder manifestar as emoções", comenta Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores desde 2005.
A entrevista estava inicialmente marcada para o Jamor, para o Estágio do Jogador...-Fui a Marselha ver o Polónia-Portugal, cheguei a Lisboa às quatro da manhã e toda a minha agenda de hoje atrasou-se.
Queria vê-lo a jogar à bola com os futebolistas que estão a fazer o estágio. Era capaz?-Claro. Gosto muito de jogar e acho que tenho talento. Joguei no GD Bragança, mas quando tinha 18 anos, a mãe de um colega meu convenceu a minha a mandar-me para Lisboa, com o filho dela, para estudar Direito. A minha mãe queria que eu me formasse, sacrificou-se e endividou-se muito.
Era o que queria estudar?
-Gostava de Direito, mas se não fosse o meu amigo, estou convencido de que tinha ficado em Bragança. Cresci no lado de dentro das muralhas, onde viviam famílias muito humildes, a maioria emigrou. Tínhamos muitos problemas de desemprego, droga, mas uma amizade muito grande. Fui dos poucos com oportunidade de estudar.
Em Lisboa, deixou de jogar futebol?
-Não. Havia uma bolsa na faculdade para quem estivesse na associação desportiva. Era sempre o mesmo conjunto de jogadores a beneficiar da bolsa, mas abriram uns treinos de captação para dizerem que o faziam, e eu fui o único a ser selecionado. Consegui o desconto nas propinas, mas, mesmo assim, precisava de ganhar dinheiro para ajudar a minha mãe e comecei a trabalhar como vigilante na própria universidade. Suportei assim os meus estudos. Não sendo um aluno brilhante, consegui conciliar o curso, o trabalho e o futebol. Integrei a equipa da faculdade, dos juristas de Lisboa...
Em que posição jogava?
-Sou um número 10 puro. Tenho uma enorme paixão pelo futebol e acho que tenho muito talento. A sério! Há malta que duvida e quando me veem, ficam surpreendidos. Inclusive, joguei contra o Paulo Bento, pois ele tinha os tios e os avós em Bragança e ia lá no verão, e a malta dizia que eu jogava melhor do que ele. E o Paulo fez a carreira que fez... isso é sintomático do que eu podia ter feito.
Portanto, passou ao lado de uma carreira de futebolista...
-O futebol tem esse lado de talento, mas também de oportunidade.
Ficou com esse desgosto?
-Não. Eu relativizo muito as coisas, acho que tem a ver com as raízes humildes, vivo bem com o que tenho e procuro ser feliz com isso.
De onde veio essa paixão pelo futebol?
-O meu horizonte eram as muralhas do castelo e passava lá o dia a jogar com os amigos, todos à porrada, a fugir uns dos outros. Lembro-me do Pressinhas, tínhamos todos uma alcunha.
Qual era a sua?
-Eu era o Barilhas. É uma alcunha da família, porque um tio meu tinha um moinho e a barilha era uma peça que se usava na pesagem.
Sempre foi uma pessoa eloquente?
-Não, zero. Eu fui sempre muito tímido. Quando o António Carraça me desafiou para a presidência do sindicato, eu não quis, achei que não era capaz. Só depois de o Paulo Madeira e o João Pinto me incentivarem é que decidi avançar e descobri um lado meu que desconhecia.
Sei que estudou na Lusíada, onde havia orais obrigatórias. Como se dava com isso?
-Era horrível. Obviamente que dá alguma bagagem, mas era um terror. Sei que tenho de assumir uma dimensão institucional, mas, fora disso, prefiro estar em casa com os meus filhos e amigos. Se estiver atenta, não me vê em eventos sociais.
Era tímido também com as miúdas?
-Era, fui agarrado à bola até muito tarde. Houve uma fase em que fui mais namoradeiro, mas não é uma característica minha. Atualmente estou divorciado, vivo com os meus dois filhos e, como também tenho uma vida profissional muito ocupada, fechei-me um pouco.
Ainda não passou pela crise de meia-idade?
-Não. Isso tem sido tema de conversa no meu grupo de amigos da faculdade. Eles dizem: "Qualquer dia, os teus filhos arranjam namorada, ficas sozinho, tens de começar a pensar nisso."
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