Zaidu ofende a sensibilidade estética da aristocracia futebolística. É a plebe dos dois pés esquerdos (direitos, no caso dele) a meter o nariz em assuntos da nobreza. Como se tolera semelhante heresia?
Corpo do artigo
O futebol é uma feira de preconceitos e Zaidu é o seu profeta. Antes dele foi Marega. Em poucas atividades humanas sobrevive ainda, com descaramento, um padrão mínimo, apertado, de requisitos para se ser socialmente aceite.
No jornalismo e no comentário sobrevivem, sem reparos, perfeitos analfabetos. No futebol, qualquer relação um pouco mais áspera com a bola é insuportável. Os desempenhos são irrelevantes. Um lateral pode caçar dez vezes, em velocidade, um avançado que foge em contra-ataque: ao primeiro passe com a canela, expõem-lhe a sua condição de tosco, indigno, enfim, membro de uma casta inferior.
Na Índia chamam-lhe "Xudras" ou "Intocáveis". Zaidu é um xudra. Nas conversas de corredores, o nome dele já generaliza um tipo específico de jogador, que está acima de onde devia (comentário, em regra, acompanhado de risos). Tudo isto foi proferido, com todas as letras, em vários programas de televisão por gente do futebol. Numa perspetiva mais religiosa, se ajudar a perceber, Zaidu é a Maria Madalena da indústria. Fisicamente superior (coisa que começa logo por ser um pecado capital; era o que faltava, atletas numa modalidade desportiva), sem pretensões, sem individualismos, incapaz de se meter numa cabina telefónica, quanto mais driblar alguém lá dentro, é o oposto do credo futebolístico. Há dez meses que ouço pessoas respeitáveis afirmar a inevitabilidade de Wendell no onze do FC Porto. Não aconteceu. No futebol, a vontade conta. Não são duzentos toques sem deixar a bola cair e a vontade depois; é a vontade primeiro e depois cinquenta toques talvez cheguem. Se lerem a biografia de Arsene Wenger, nos capítulos sobre Weah ou Thuram, perceberão o que isso significa. Zaidu é uma lição: no futebol, ninguém está excluído à partida.