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Jornalista não é notícia. Os meus primeiros chefes torciam o nariz até quando escrevia na primeira pessoa do singular. Nesses tempos, o costume era o plural majestático. O jornalista não pensava isto ou aquilo: "nós" pensávamos, ou seja, eu e, suponho, uma peça de roupa interior à minha escolha éramos coautores de todas as minhas opiniões escritas. Obviamente, não podia opinar pelos colegas, muito menos em nome do diretor, pelo que aquela primeira pessoa do plural me parecia um atentado ao rigor, como várias outras regras que, nesses dias, as redações aceitavam sem refletir.
No entanto, sempre concordei com a premissa na primeira pessoa. Eu não sou notícia, no sentido de que o meu desconforto no terreno, se me trataram bem ou mal, se estive ou não na primeira fila, se passei fome ou sede enquanto cumpria o serviço não são "a" notícia. Mas os jornalistas, no plural, são tão notícia que, esta semana, foram-no três vezes.
Em Inglaterra, a Premier League aceitou vender o Newcastle ao fundo estatal de um país governado por um homem que manda assassinar jornalistas. Em Espanha, o selecionador proclama que não lê jornais, nem acompanha os média, porque sabe mais de futebol do que os jornalistas e comentadores. E, em Estocolmo, a academia sueca teve a originalidade de premiar com o Nobel da Paz dois jornalistas muito parecidos com aquele que o príncipe saudita assassinou.
No "El Pais", Jorge Valdano fez a devida autópsia ao apelo de Luis Enrique à ignorância. Explicou que os jornalistas são intérpretes para o público. O que o selecionador espanhol disse foi que não quer ser entendido, nem quer entender. Saber de futebol é saber tudo.
Ora, os jornalistas não são atormentados ou assassinados por acaso. Durante 30 anos, habituei-me a ouvir classes como a dos árbitros queixarem-se (e bem) de ameaças e agressões, mas creio que, nesse tempo, contei bastantes mais agressões a jornalistas da área do desporto do que a árbitros de futebol do primeiro escalão.
Se me permitem quebrar a minha regra, eu próprio recebi, e recebo, centenas de ameaças de todos os géneros, incluindo um ex-treinador alcoolizado que se passeou em frente ao edifício do jornal armado com uma espingarda de caça (ele não sabia, mas eu estava de férias) - e isto apesar de, em 32 anos de profissão, nunca ter visto um único artigo contestado em tribunal.
Ataques em parques de estacionamento, pneus furados ou carros riscados são tão triviais que nem merecem menção, e a maioria dos jornalistas não lhes daria importância. Mesmo as ameaças, as agressões, a brutalidade frequente de dirigentes e treinadores, e a intimidação tendem a ser aceites com relativa naturalidade.
Já nada me choca, exceto quando, do outro lado da mesa, um treinador campeão nacional me diz que não lê jornais. Ou quando um jovem treinador português se recusa a falar com jornalistas porque "não gosta deles", como se fossemos todos fabricados em série (conhecerá a definição de racismo quando se ajoelha na Premier League?). Ou quando uma figura tão notável como um selecionador de Espanha (para satisfazer um ressabiamento qualquer que vinha ruminando) diz ao mundo que não há nada a ganhar com a troca de ideias, pontos de vista e opiniões.
Este é, de facto, um futebol em que se aceita a venda de um clube a um Estado assassino de jornalistas.
Se Luis Enrique (e muitos outros ignorantes) conhecesse tanto o futebol como julga, saberia que a única diferença entre ele e um treinador de pelota basca é o público nas bancadas e nos sofás. E que, se esse público cresceu tanto, foi porque muitos alguéns que não percebiam nada de futebol semearam pelo planeta, durante um século, as narrações épicas do Uruguai-Argentina de 1930, as lendas de Herbert Chapman, dos austríacos dos anos 40, dos húngaros dos anos 50, do Maracanazo, de Pelé, Garrincha, Di Stéfano, Beckhenbauer, Crujff, primeiro só por escrito, depois nos relatos prodigiosos na rádio e, finalmente, na televisão.
Durante nove décadas, o futebol que a maioria do planeta conhecia (e que o apaixonava) era, quase em exclusivo, o futebol dos jornalistas.