Pelos padrões do futebol Michelin, o maliano nunca jogaria a Liga dos Campeões e talvez nunca chegasse sequer a uma equipa grande. A história de uma heresia
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Nenhum treinador devoto da Sagrada Igreja dos 500 Passes contrataria Marega há quatro anos e acredito que boa parte deles continuaria a desdenhá-lo agora. É o exemplo acabado do futebol marginal que desobedece em tudo à PIDE do "bom futebol" ou, como lhe chamo, futebol Michelin. Marega estava destinado ao Auschwitz da elegância. Nunca jogará um futebol loiro de olhos azuis. Tinha, e terá sempre, uma estrela de David bordada no equipamento. Ele não dribla, arromba; e não domina a bola, abocanha-a. Não é bonito, nem malabarista; nenhum dos seus movimentos faz lembrar o Lago dos Cisnes (quanto muito, o Lago Ness) e tenha a certeza de que ponho os cabelos em pé a qualquer beato do futebol positivo se lhe pedir que imagine Messi e Marega juntos com a mesma camisola. Uma pausa de cinco segundos para recuperarem da imagem (e talvez para concluírem que até funcionaria)... Restabelecidos?
O caso Marega devia bastar para matar, de vez, a simplificação pateta do jogo. Há um milhão de maneiras de jogar, e cada uma delas tem espaço para tanques e para violinos, se calhar até para um tanque que seja também um violino, como Ibrahimovic. Podem ganhar os artistas e podem ganhar os atletas; podem ganhar os artistas que não sejam (de todo) atletas e os atletas que não sejam (de todo) artistas. Pode ser uma história de habilidade sobrenatural ou de vontade sobrenatural; de inteligência do treinador ou de inteligência do jogador. Ou tudo ao mesmo tempo. Um jogo de futebol pode ser ganho de emboscada ou ter um plano engenhoso como os dos assaltos aos bancos. Pode ser ganho tanto por encantamento como por esmagamento.
Marega afronta, acima de tudo, a ideia profundamente obtusa de que haja uma superioridade moral qualquer no futebol, até porque quem o vê disparar atrás de uma bola na defesa, aos 120 minutos de jogo, terá dificuldades em entender essa separação. Naquele instante, onde estava a inferioridade moral daquele brutamontes com três pés esquerdos? Ou a superioridade moral do violinista requintado que já não está para isso?