TEORIA DO CAOS - Um artigo de opinião de José Manuel Ribeiro.
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1 Os Valores Mobiliários Obrigatoriamente Convertíveis, ou VMOC para os (muito) amigos, ficarão para a história do futebol da República como um mistério e para António Salvador como uma proclamação de genial competência financeira: conseguiu extrair ao Sporting mais do dobro do dinheiro (31,5 M€) que o BCP no mesmo período de tempo (14 M€).
Enquanto o banco deixava que lhe fugisse por entre os dedos, como água, uma dívida de 83,4 milhões de euros, Varandas entregava 28,5 milhões em dinheiro (Amorim e Paulinho) e 3 milhões em géneros (Borja) ao Braga, a somar a várias outras compras. A meio, entre as duas transferências, foi permitido ao Sporting falhar dois pagamentos ao BCP e ao BES, em setembro de 2020 e setembro de 2021, no montante de 16,2 milhões de euros (ver Lusa, 21-11-2021).
No final, o BCP aceitou receber só 14 M€ de um clube ao qual permitiu, nessas duas épocas, gastar sem obstáculos 56 M€ em jogadores e mais 12 M€ num treinador, e deu-se por contente, diz o comunicado oficial, porque se livrou do futebol. Do futebol e de 70 milhões de euros. Curiosamente, quase o mesmo valor que o Sporting investiu no mercado. Podemos dizer, por isso, que os acionistas do BCP pagaram, literalmente, Amorim, Paulinho e o título do Sporting. Citando o embaixador e sportinguista Seixas da Costa, é um caso agudo de javardice bancária.
2 Na verdade, Seixas da Costa usou o termo "javardo" no seu ensaio académico sobre Sérgio Conceição, mas javardice é uma excelente palavra para designar os muitos incidentes em tantas décadas de futebol. Mais do que javardices de arbitragem, financeiras ou comportamentais, elas são de dois géneros: as javardices muito comentadas e as javardices muito esquecidas. Ficou esquecida, por exemplo, uma javardice bastante parecida com esta que o Banco Espírito Santo fez com o Benfica em 2001, quando aceitou uma garantia de 1,83 milhões de ações da SAD para emprestar 8,4 M€. Viria a vendê-las ao Rei dos Frangos, em 2017, por um euro cada, com um prejuízo de 6,6 M€.
3 Mas de recordar mesmo são os detalhes dos célebres títulos da Operação Coração com que o Benfica se teria salvado, em 2001, das piores consequências de uma dívida fiscal de dois milhões de contos (10 M€), e aqui convém corrigir um dos muitos mitos que corrompem a história do futebol: não eram ações da Operação Coração (um peditório pelos sócios), eram ações da SAD. As pessoas lembram-se de que a ministra Manuela Ferreira Leite assinou o despacho, só que esse foi apenas o último capítulo de uma avalancha de violações à lei, distrações dos deputados, do diretor-geral de impostos e até jantares-comício do PSD com a presença do então presidente do Benfica, Manuel Vilarinho (a quem pertenciam as ações da SAD com que o BES teve de ficar).
Aconteceu de tudo: o Benfica auto denunciou-se por causa de uma dívida fiscal criada pelo presidente anterior, Vale e Azevedo. Logo ali se levantou o escândalo, porque, desde 1998, havia uma comissão de acompanhamento dos clubes, no âmbito da secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais e ela, misteriosamente, não deu por nada. Depois, o diretor-geral dos Impostos terá aceitado que a dívida fosse paga a prestações (Público, 4-6-2002), contrariando a lei, que exigia o pagamento na íntegra em caso das auto denúncias, e, finalmente, apesar de nem sequer ter começado a pagar (contestou a cobrança de juros), o Benfica solicitou uma certidão de não devedor à administração fiscal para poder iniciar a construção de um estádio que custaria 165 M€. Após vários meses de impasse e depois de um despacho cirúrgico para mudar a lei, intervém Ferreira Leite, que aceita as ações da SAD, nessa altura ainda nem sequer cotadas em Bolsa.