O desporto não é prioridade numa sociedade em luta diária pela sobrevivência, mas nota-se o impacto: o popular basebol perdeu a sede da Champions e um salário mínimo quase não chega para ver um jogo.
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A Venezuela atravessa um turbilhão político, económico e social que a lança para as manchetes e aberturas de noticiário em todo o mundo. Posto isto, até parece boçal perguntar "então e a bola?", mas não deixa de ser um exercício interessante. Por exemplo, quanto dinheiro é preciso para um fanático - termo utilizado para adepto - comprar um bilhete para o basebol, um cachorro quente e um sumo? "Cerca de 15 mil bolívares. Só o dinheiro do bilhete é suficiente para comprar um quilo de arroz. O salário mínimo são 18 mil. Claro que as pessoas preferem comer do que ver um jogo ao vivo", explica a O JOGO Miguel Ricardo Peña, jornalista da rádio venezuelana ADN Deportes. A tendência dos estádios cada vez mais vazios é também confirmada por um funcionário de um clube de futebol da primeira divisão que, por receio de represálias, pediu anonimato. "Estiveram apenas 10 016 pessoas no clássico do último fim de semana entre Deportivo Táchira e Caracas FC, num estádio com capacidade para 30 mil", exemplifica. É certo que a bola não deixa de rolar na Venezuela, mas os problemas acumulam-se e já vêm de trás.
Começamos o retrato pelo basebol precisamente por ser o desporto-rei na Venezuela - futebol e basquetebol dividem o segundo lugar - e esta modalidade recebeu recentemente um grande balde de água fria. A Serie Caribe, espécie de Liga dos Campeões, mudou a sede da cidade venezuelana de Barquisimeto para o Panamá. "É a segunda vez consecutiva que nos tiram a Serie Caribe. Alegaram que não há garantias de segurança por causa dos protestos, apesar de muitas pessoas terem ficado incomodadas por aqui. O campeonato é patrocinado por uma empresa petroleira que pertence ao Estado", explica Miguel Ricardo. Ainda no basebol, os Leones de Caracas, em plena final do campeonato, viram três jogadores estrangeiros abandonarem o país depois de 35 pessoas terem perdido a vida em protestos nas ruas da capital.
Por outro lado, se os transportes, ou a falta deles, coloca problemas aos adeptos, as equipas de futebol também se arriscam nas deslocações. "Muitas têm de fazer quilómetros de autocarro e há vários casos de sequestros e assaltos na estrada. As equipas com mais peso económico conseguem ter escolta policial, as que têm dificuldades, muitas vezes não", acrescentou o funcionário do clube, antes de dar conta de certas discrepâncias. "Há equipas da primeira divisão que lidam com valores muito altos em dólares - método ilegal para pagamentos - mas as estruturas inferiores recebem em bolívares e abaixo do salário mínimo. Não têm o que comer", aponta, em linha com Miguel Ricardo. "Há equipas que são sustentáveis, mas nas mais pequenas e na segunda divisão há salários em atraso." De facto, Diego Barragán, treinador colombiano que deixou recentemente o Yaracuyanos, da segunda divisão, lembrou a procura de uma semana por um antibiótico que depois custou 100 vezes mais e a alegria de um jogador, que infringiu as regras para fotografar o pedaço de frango que tinha no prato e mostrar à família.
Já o campeonato de basquetebol arrancou esta semana mas, em 2018, a liga teve de apelar à ajuda de Nicolás Maduro para iniciar a competição.
Falta de bilhetes trama seleções
No mês passado, a dupla venezuelana de voleibol de praia feminino, Gabriela Brito e Norisbeth Agudo, faltou à primeira prova do ano organizada pela confederação sul-americana da modalidade. Foi a sexta vez que as atletas deram "forfait" e, como tal, ficaram impossibilitadas de participar na próxima edição dos jogos Pan-Americanos. Porquê? A jornalista Fabiana dos Reis, do "Diario Primicia", explica. "Tudo depende do Governo, do Ministério do Desporto. São eles que têm de tratar de todas as viagens dos atletas nacionais", afirmou, com outros exemplos de um problema que já se verifica desde 2017: "A equipa de basebol falhou a repescagem para os Pan-Americanos. O boxe, no ano passado, perdeu o torneio de qualificação para os Jogos Centro-Americanos. Em 2017, a seleção masculina de voleibol chegou com um dia de atraso ao Mundial e perdeu o primeiro jogo." A lista de atrasos e faltas prossegue noutras modalidades, como nas seleções femininas de boxe e vólei, na esgrima, no softbol ou no desporto adaptado, com os atletas a ficarem por várias vezes retidos nos aeroportos à espera de uma solução.
A situação explica-se, em parte, pela espécie de "bloqueio aéreo": dezenas de companhias reduziram as ligações ou deixaram de operar na Venezuela. Alegam falta de condições de segurança e insatisfação com o Governo por não desbloquear a conversão e repatriação de cerca de 3,7 mil milhões de dólares acumulados com a venda de ingressos. "São poucos os atletas que conseguem patrocínios privados para participarem nas provas", completa Fabiana.
Curiosidades
Houve suspeitas de jogos viciados
Há pouco mais de um ano, os organismos do futebol venezuelano investigaram alegadas viciações de resultados. Suspeitava-se que futebolistas recebessem até 300 dólares de casas de apostas asiáticas para prejudicar as próprias equipas, mas nada se concluiu entretanto.
Novo campeonato virou imbróglio
A Federação Venezuelana de Futebol anunciou a criação de um torneio de reservas para sub-23 para todas as equipas que competem na primeira liga. Os clubes contrataram jogadores e treinadores, mas, nas últimas semanas, criou-se uma enorme confusão quanto ao carácter obrigatório da prova e, entre os recém-contratados, já há quem procure alternativa.
Horários mudam para chamar adeptos
As dificuldades com os transportes públicos levaram à antecipação dos horários dos eventos desportivos, mas os efeitos pouco se têm notado. Mesmo assim, há adeptos que, por amor à camisola, não se importam de fazer longos trajetos a pé, inclusive na escuridão motivada pelos apagões e cortes de energia. Por outro lado, algumas equipas foram vítimas de assaltos e sequestros nas estradas.