37.º aniversário d' O JOGO - A paixão incondicional pelo Espinho travou-lhe a ambição. Deve a estreia nos seniores a Manuel José, mas teve receio
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Entre os 17 e os 20 anos, Vítor Cardoso parecia tocar no firmamento. Treinava e jogava pelos seniores do Espinho, impressionando os adeptos pelo virtuosismo e maturidade competitiva, e era presença regular nas seleções nacionais jovens, juntamente com Costinha, Pedro Henriques, Poejo, Porfírio, Kenedy e Bambo, entre outros. Por essa altura, o FC Porto e o Boavista acenaram-lhe com convites, mas o apego ao clube do coração e o receio de dar um passo maior do que a perna fizeram com que virasse as costas aos dois gigantes portuenses. Ainda estava no começo e, por certo, não faltariam novas abordagens de grandes clubes num futuro próximo, pensou ele e o pai. Puro engano.
O tempo foi passando e o médio/lateral nunca conseguiu dar o ambicionado salto, caindo progressivamente numa espécie de anonimato em escalões secundários, ao serviço de Aves, União da Madeira, Leça, Oliveirense, Estarreja, Fiães, Nelas, Dragões Sandinenses e Ac. Viseu, até colocar um ponto final na carreira aos 37 anos, quando recuperava de uma rotura de ligamentos num joelho, a única lesão grave que sofreu. Após ter tentado ser treinador (chegou a ser adjunto nos iniciados do Oliveirense e técnico principal dos juniores do Espinho), despediu-se, em definitivo, do futebol para se tornar funcionário do Casino de Espinho. "Ganhava cerca de 120 euros como treinador, era uma coisa quase simbólica. Podia ter dado para mais no futebol, mas não tenho vergonha nenhuma da minha carreira. Usufruí do prazer de jogar e ganhava acima da média. O futebol deu para comprar uma casa e um carro, pelo menos não carrego essas dívidas às costas. Só pelo prazer de jogar, valeu a pena", comenta.
Foi 30 vezes internacional pelas seleções jovens de Portugal, marcou presença em fases finais e hesitou em aceitar convites do FC Porto e Boavista. Caiu no esquecimento.
Não esteve na génese do elenco que sucederia à geração de ouro que havia revalidado o título mundial de sub-20 em Lisboa (1991), de Rui Costa, João Pinto e Figo, mas depressa seria referenciado a Carlos Queiroz e só precisou de um treino em Lisboa para convencer o selecionador, numa altura em que este já se preparava para deixar a Federação. Somou 30 internacionalizações, marcando presença, já sob o comando de Agostinho Oliveira, no Europeu de sub-19 disputado na Alemanha, em 1992, com Portugal a perder somente na final diante da Turquia, e no Mundial de sub-20, disputado na Austrália, em 1993.
Pelo meio, faltou-lhe a ousadia de partir para a aventura com a convicção de que triunfaria. "Uns senhores do FC Porto chegaram a deslocar-se a Espinho para conversar com os meus pais e ofereceram um contrato de um ano para os juniores. O meu pai respondeu que nessas condições eu não iria. Só aceitaria se o FC Porto oferecesse um contrato profissional, com a duração de três ou quatro anos. Mais tarde, na minha transição de júnior para sénior, tive o Boavista como nova oportunidade, por indicação do Manuel José, que me havia lançado no Espinho aos 16 anos. Tive praticamente tudo acertado para um contrato de três épocas, mas o Espinho fez pressão para eu ficar e até igualou os salários. Eu era o maior nome da equipa e estava na minha zona de conforto. Provavelmente as coisas aconteceram demasiado cedo e rapidamente", estima.
Num par de anos, o arrependeu-se da "opção" de descartar o clube da pantera. "Se fosse agora, tinha arriscado. O meu pensamento nessa altura foi mais ou menos assim: "Se as coisas correrem mal para o mister Manuel José, posso acabar ali abandonado, no meio daquelas feras todas do Boavista". Para a minha posição, havia, por exemplo, o João Pinto...", indica.
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Do golo na final do Europeu a uma má preparação na Austrália
O Europeu de sub-18 disputado em 1992, na Alemanha, é a memória mais saborosa de Vítor Cardoso. Portugal chegou à final da competição e só perdeu, diante da Turquia, no prolongamento, decidido no formato de morte súbita. "Estivemos excelentes e até marquei um golo nessa final. No fim dos 90 minutos regulamentares, o jogo estava empatado e, já no prolongamento, sofremos um golo de livre, com a bola a bater na barreira, enganando o Costinha", pormenoriza, assumindo que no ano seguinte as "expectativas eram bem elevadas" para o Mundial de sub-20, na Austrália. Tudo se desvaneceu, porém, na fase preliminar da competição. "A seleção vivia uma fase conturbada por causa da mudança na direção técnica da FPF e a preparação foi má. Já tinham saído Carlos Queiroz e Nelo Vingada e, com Agostinho Oliveira, correu mal aquilo. O fuso horário e as temperaturas elevadas também influenciaram negativamente o rendimento dos jogadores. Não nos adaptámos bem e sofremos três derrotas em três jogos, frente à Alemanha, Uruguai e Gana, que depois foi à final. No ano anterior, no Europeu, até havíamos batido a Alemanha por 4-1 ou 3-1", detalha.
A polivalência tanto ajudava como lhe roubava palco
A capacidade para atuar em diferentes posições foi o trampolim de Vítor Cardoso para as seleções. Agostinho Oliveira recorda-se dele, especialmente da polivalência que o tornava elegível em qualquer convocatória. "Podia jogar como lateral e médio interior. Fazia relativamente bem a função de ganhar a profundidade. Era muito útil para compensar a fadiga dos habituais titulares, não era um titular de caras. Julgo que essa polivalência retirava-lhe, porém, intensidade. Era um jogador pautado, cerebral, decidido, mas não era um cinco estrelas. Tratava-se de um relógio suíço que vestia o fato-macaco, mas não era um fora de série. A utilidade retira muitas vezes o talento", explica o antigo selecionador. Carlos Manuel Miragaia, que orientou o antigo jogador no Fiães, já muito perto do fim da carreira, recorda-se de um "trintão diferenciado". "Pensava e executava muito bem. O que lhe faltava: já não era um atleta para alta intensidade, o que era normal para a sua idade. Ele próprio dizia que se tivesse trabalhado mais a componente física teria sido outro jogador. Tinha essa lacuna. Pensava muito à frente, mas o corpo já não correspondia na mesma proporção. Um médio corre sempre uns 12, 13 quilómetros por jogo e, aos 30 anos, ele já precisava de descansar. No Fiães chegava a fazer apenas 60 por cento dos treinos. Foi assim que conseguimos tirar o máximo possível dele, porque de facto era um médio distinto", conta o atual diretor técnico da AF de Aveiro.
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No Casino, perde-se mais do que no futebol
Apesar de não ter conseguido saltar para a ribalta no futebol, Vítor Cardoso considera que o futebol foi "aposta boa". "Joguei futebol durante muitos anos: dos seis anos aos 37. Comecei no futebol de rua até entrar nas escolinhas do Espinho. Era o que eu mais gostava de fazer. Adorava. Tinha o sonho de me tornar profissional de futebol e consegui. É claro que estava à espera de mais, mas as decisões que tomei não foram corretas. Agora faria as coisas de outra maneira. Modéstia à parte, eu tinha algum jeito para o futebol. Faltou-me possivelmente a ajuda de alguém, do cliquezinho de alguém. Sempre acreditei que se chegasse a um clube do primeiro escalão, acabaria por jogar, mesmo que começasse como suplente", analisa, agora mais do que nunca familiarizado com apostas verdadeiramente frustradas. "No casino perde-se muito mais do que eu perdi no futebol".