37.º aniversário d' O JOGO -Infraestruturas dão outra dimensão ao trabalho que se faz na formação, desde que a revolução da era de Carlos Queiroz deu ao jogo português os 30 metros que lhe faltavam, com uma base feita de saber científico.
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Títulos mundiais, europeus, academias de elite e sucessivas gerações capazes de alimentar esse hábito de estar entre os mais fortes e a acreditar que é possível vencer - os adeptos mais novos talvez nem consigam imaginar que Portugal não foi sempre esta promessa bem alimentada de conquistas com que se habituaram a vibrar, quando jogam as seleções, mas houve um tempo em que as expectativas eram mesmo muito limitadas.
A conquista do Mundial de Sub-20, em 1989, em Riade, e depois a do Mundial de Lisboa da mesma categoria, em 1991, marcaram a viragem do trabalho na Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que os clubes viriam a acompanhar. Agostinho Oliveira, 75 anos, fez parte desse caminho com as equipas nacionais jovens, desde 1983 e durante 21 anos, com três títulos no currículo e a convicção de que a mudança teve um nome: Carlos Queiroz, o professor formado no Instituto Superior de Educação Física da Universidade Técnica de Lisboa, atual Faculdade de Motricidade Humana, que deu ao futebol português os 30 metros que lhe faltavam, nas contas de Pedroto. Primeiro, estranharam-lhe os métodos, mas depois entranharam-se e estão para ficar, graças à melhoria das condições de trabalho, acredita o treinador.
Quando pensa na evolução do futebol de formação, qual é a primeira diferença que vem à memória?
Há um trajeto histórico. Formação sempre se fez, independentemente dos graus e das garantias que se foram dando a quem gravitava à volta do futebol. Não é o termo de qualidade que se está a confrontar aqui, mas de infraestruturas criadas para dar uma dimensão diferente a esse menino que treinava no patamar lá do recreio. Quando entrava num campo de futebol, a maior parte das vezes não tinha condições, porque era pelado ou um sintético já todo roto. Muito do que se deu na evolução da formação foi a constituição de infraestruturas que permitiam trabalhar de outra maneira. Há uma realidade a que ninguém pode fugir, que é a dos espaços físicos: se tenho um campo e deixo entrar para lá 10, 12, 20 miúdos, eles jogam, estão a trabalhar. Agora, quando não tenho sequer o espaço, por muita carga teórica que lhes possa dar, não têm possibilidades absolutamente nenhumas.
"Pedroto dizia que ao nosso futebol faltavam 30 metros. De facto, faltavam, posicionamentos eram muito fixos, vivia-se quase em caixotes"
Não ganham em criatividade?
-A criatividade... Já tenho idade suficiente para protelar a criatividade. A maior parte das pessoas falava do futebol de rua porque se jogava de sarjeta a sarjeta. Eu era miúdo, em Lisboa, e na minha rua, que era ali bem perto do quartel do Carmo, a Rua do Duque, tinha uma rua completa. Era raro irem lá os carros perturbar e, ao mesmo tempo, havia dois buracos, os bueiros; então, nós jogávamos e quem metesse a bola no bueiro, contra aquela equipa, fazia golo. O trajeto da bola era implícito de criar alternativas de direção. Porquê? Porque, automaticamente, estávamos a bater numa bola que ia bater numa pedra, que ia bater algures. Ao fazê-lo, eu tinha de predispor a realidade corpórea de maneira diferente, para encontrar solução. Alguns fatores que, em ordem social, neuromuscular, etc. não não nos ajudaram, noutra dimensão beneficiaram-nos imenso: a cinta baixa, dado que, tradicionalmente pequenos, o nosso ponto de equilíbrio tinha um grau gravitacional baixo e isso implicava com a mudança de direção, o arranque, o sprint. Toda esta realidade veio ajudar e, em determinada altura, começou-se a pensar: havia potencial na qualidade individual, era preciso consubstanciá-lo. Dizia o falecido Pedroto que ao nosso futebol, na altura, faltavam 30 metros. De facto, faltavam, porque a gente não estendeu as nossas equipas. Os posicionamentos eram muito fixos, vivia-se quase em caixotes. Quando começámos a trabalhar a realidade da formação, tive a felicidade de participar nisso, com início no Carlos Queiroz, indubitavelmente, e na camada de rapazes que saíram naquela altura da universidade.
Diria que a ciência também fez a diferença, neste processo?
-Sim, porque o Carlos [Queiroz], o Jesualdo [Ferreira], o Nelo [Vingada] e o Rui [Caçador] vinham de uma universidade em que a educação e o controle e a discussão física eram debatida mesmo a sério e, de facto, eles são os primeiros a entrar no futebol com uma carga de conhecimento da motricidade, etc., completamente diferente da nossa, que se resumia a termos sido jogadores de futebol. Eu tinha a particularidade de, além disso, ser licenciado em Psicologia, o que podia explicar muitas coisas através do conhecimento do ser humano, da sua evolução e estrutura mental. O resultado desse trabalho é a primeira geração de campeões do Mundo de sub-20.
"À medida que há trabalho, campos, indivíduos mais elucidados, isto não tem retorno. E depois, há a vantagem de termos um critério técnico-individual"
Houve resistência, quando apareceram uns professores com outras soluções?
-Não deixou de haver. Quaisquer situações que envolvem alternativas, modificações, têm sempre contestação, é lógico. Houve sempre uma grande discussão, ainda hoje há. Este nível de compreensão foi declaradamente acérrimo. O rebater de toda a realidade que se nos confronta é o sucesso: tens sucesso, dão-te guarida, apoiam-te, és o melhor. Fomos campeões do Mundo em em 1989 e em 1991.
Não foi um acidente.
-Havia uma realidade consistente, trabalhada. Mesmo assim, sofremos muitas queixas e azedumes, por parte dos clubes.
Que queixas?
-Por causa do tempo com os jogadores, nas seleções. Havia uma quebrazinha do campeonato e nós pegávamos nos miúdos e fazíamos estágios de 15 dias em que podíamos criar sistematização do trabalho. Por exemplo, vem aqui à baila a realidade do Pedroto, faltavam 30 metros: começámos a abrir o espaço do jogador na ocupação das zonas do campo e metemos o ala direito, metemos o médio mais próximo, e esta realidade começou a ocupar todo o espaço do campo. Isto é um bocado teórico, mas é quase assim. Então, fez-se tudo em função da dimensão que se pretendia para o aumento de qualidade do jogador. Repetia, repetia, porque tínhamos 15 dias, não era segunda, terça e adeus, até à próxima. Ia-se para casa e havia uma destituição mental terrível, porque não havia nada que desse continuidade. Então, a sistematização foi diferente, repetir, repetir. Dou o exemplo de uma realidade sobre a ala: tínhamos o ala, o lateral-direito, o médio e entre estes três gizava-se, desenhava-se coordenadas; aquele abandona o espaço, tu preenches o espaço dele. Na seleção, todos os riscos que se correu foi precisamente por isso, porque se repetiu, para além, logicamente, da qualidade que o nosso jogador tem.
As infraestruturas garantem a continuidade deste processo?
-Não é só a continuidade. Os saltos passíveis de se acometer, de se intrometer na discussão dos títulos, na evolução do jogador - isto já é do traço que fizemos anteriormente e está ligado à sistematização: se eu tiver um campo e puder treinar lá todos os dias; se tiver um equipamento para vestir todos os dias, uma capa para pôr por cima, quando está a chover; se... Todas as coisas que acontecem fazem com que haja evolução. Há critério de evolução. Agora, se não tenho campo para treinar, se só treino 10 ou 20 minutos ou vou correr, correr, correr só, não interessa; fundamentalmente, correr é com bola, jogar, ter possibilidades, mas, se não as tenho, não evoluo. Tenho muita dificuldade em evoluir.
É um caminho sem retorno?
-À medida que há trabalho, campos, indivíduos mais elucidados, automaticamente, isto não tem retorno. E depois, há a tal vantagem de termos uma realidade que os outros, normalmente, não aparecem com ela, a cinta baixa, um critério técnico-individual superior.
"A mentira toda está nos pais"
Ao futebol sem condições de treino sucedeu o negócio das escolinhas, sem que esta nova organização represente um risco de sistematização precoce, defende Agostinho Oliveira: "Há muitos critérios educacionais sociais, de partilha, de companheirismo, de afeto, de relação, que quanto mais cedo [desenvolvidos], melhor. A criança não fica maltratada porque pode jogar futebol. Nem estamos a falar de futebol profissional. As academias fortalecem, porque o que se adquire, o que se consolida é todo um processo da ordem educacional".
A "receita" dá jeito aos clubes, mas "o interesse" deles "não é esse". "Fundamentalmente, está na possibilidade de ver um novo atleta com o grau de capacidade que pretendem para poder chamá-lo e integrá-lo. Todas estas escolinhas têm o interesse base de poder enquadrá-los. Depois, há um trajeto". "No fundo, a mentira toda está nos pais", sublinha: "São eles quem perturba, quem desequilibra os miúdos, porque toda a gente quer ser Ronaldo, ganhar cento e tal milhões e ter sete carros na garagem. A integração do miúdo no grupo de trabalho não é tão-pouco para fazer com que seja um grande jogador, mas sim para que cresça em tudo aquilo que são as realidades sociabilizantes". Quanto aos miúdos com qualidade, mas dinheiro para este futebol, "o grupo encaixa-os", acredita, "porque apareceu ali uma pérola sem ter de andar à procura".
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