No Brasil, nascem com samba no pé e com pés para dominar a redondinha. Quando a regra do atraso ao guarda-redes mudou, os portugueses tiveram dificuldades... os brasileiros não!
Corpo do artigo
Um jogo de futebol põe, frente a frente, 22 atletas, dispostos em diferentes zonas do relvado e com diferentes missões. Ainda assim, nenhuma é tão específica como a do guarda-redes, a começar pelo facto de ser o único em campo a quem é permitido jogar com as mãos. E nesta categoria de atletas há uma nacionalidade com forte representação na I Liga portuguesa. São 23 os brasileiros inscritos pelos clubes primodivisionários, representando 40% dos 58 guardiões nos plantéis das 18 equipas. Destes 23, 39% são titulares.
São 23 os guarda-redes brasileiros inscritos em clubes da I Liga, uma realidade recente e com explicação.
"Os guarda-redes brasileiros têm bastante qualidade, saem bem da baliza, são muito técnicos, com boa leitura de jogo", avalia Ricardo Palmeira, treinador de sub-20 do Palmeiras (Brasil) e antigo treinador da seleção de sub-17 do escrete. "De há uns anos para cá, o desenvolvimento dos guarda-redes acentuou-se. Já tivemos o Taffarel, o Dida, que ainda treinei no [Esporte Clube] Vitória. Júlio César e Hélton foram dos primeiros a ter sucesso em Portugal. Tem sido feito um trabalho bom. Sempre se deu muita atenção e se aperfeiçoou a saída a jogar, o uso dos pés, e a personalidade técnica dos guarda-redes, o saber onde e em quem colocar a bola", lembra o antigo treinador de Charles (Marítimo), no Cruzeiro.
Palmeira reconhece que nos escalões de formação "o trabalho tem crescido bastante, com dois treinadores de guarda-redes em cada equipa. Os treinadores, principalmente nas divisões de base, são cada vez mais e com mais qualidades. São treinadores formados em educação física, com conhecimento do treino, muitos também ex-atletas, e atentos às especificidades da função de defender a baliza. Não se descura nada!", vinca.
A qualidade dos atletas brasileiros é reconhecida por quem conhece bem as lides do futebol... e das áreas. "O guarda-redes brasileiro evoluiu muito nos últimos anos. Isso é fruto desse trabalho. Estão de parabéns. Têm um grande equilíbrio, ofensiva e defensivamente, e o à-vontade de se sentir sempre bem com a bola nos pés. Depois têm o talento e a qualidade para a posição em campo, aliada a uma personalidade forte. É fruto do leque enormíssimo de recrutamento que têm pelo país. O guarda-redes começou a despertar paixão nos atletas. Em Portugal trabalha-se muito bem. Não temos é um número tão grande de atletas como o Brasil tem", reconhece Vítor Baía, guardião português com 700 jogos disputados e 33 títulos conquistados pelo FC Porto e Barcelona.
A par da qualidade dos atletas brasileiros, para esta "importação" de atletas de área pode ter contribuído a regra de meter os pés... onde as mãos não podem ir. "Quando a regra do atraso ao guarda-redes mudou e se deixou de poder agarrar a bola com a mão, começou a jogar-se mais com os pés, os da América Latina estavam, em relação a nós, mais preparados. De há 10 anos a esta parte começou a ser feito um excelente trabalho a nível do treino de guarda-redes. As equipas técnicas já têm treinadores de guarda-redes. Quando comecei não havia e quando saí do Paços já havia um treinador de guarda-redes por escalão", aponta Pedro Correia, ex-guardião do Paços de Ferreira e treinador de guarda-redes.
Esta é uma realidade que tem vindo a ser trabalhada pelos treinadores nacionais. Vítor Baía conta que "agora todos os miúdos trabalham bem a parte de domínio de bola com os pés", dando como exemplo do trabalho que é feito no seu "Projeto 1 - Escola de guarda-redes da FPF", onde tem aumentado o número de atletas. E isso, considera, acontece "porque as referências voltaram. Houve um interregno de referências que agora voltaram com o Rui Patrício. Estou certo de que daqui a quatro ou cinco anos este paradigma estará invertido".
Na temporada 2018/19 só Benfica e Tondela não têm guarda-redes brasileiros.
Pedro Correia concorda com o ex-colega de posição. "Depois do Bento, aparece o Baía como referência para os guarda-redes. O Patrício é um ícone para estes ídolos novos, mas o Baía marcou... o Patrício nunca esteve tanto tempo em alta como o Baía". Para além disso, o treinador aponta outro aspeto. "Os guarda-redes não nascem logo, demoram a aparecer e chegam [os brasileiros] à I Liga já com 22 ou 23 anos. Em Portugal, aparecem logo com 18 anos. Mas a questão é que quando falham já não se lhes dá mais oportunidades. Quando chegam cá do Brasil, com muitos campeonatos, já fizeram mais jogos e são vistos de maneira diferente", constata Pedro, num apelo à proteção dos atletas nacionais.
Domínio total em dois clubes
Das 18 equipas da Liga, há dois que não têm outra nacionalidade que não a brasileira a guardar as suas balizas. Boavista tem quatro guardiões inscritos - Willian Menezes chegou a Portugal em fevereiro de 2019, depois de Helton Leite se ter lesionado - e todos provenientes do outro lado do Atlântico. Para já, a baliza é guardada por Bracali, o mais velho deste lote de atletas. Também nesta situação de predomínio está o Rio Ave. Léo Jardim, cedido pelo Grémio, e Paulo Vítor são os únicos guarda-redes inscritos, ambos brasileiros.
Europa Portugal não é caso único
Os brasileiros estão a afirmar-se nas balizas e o nosso país não é caso único. Há guardiões canarinhos em grandes clubes europeus. É disso exemplo Ederson, ex-Benfica, e que Pedro Correia diz ter "muita escola de Portugal", no Manchester City. Outro caso é Alisson, irmão de Muriel (Belenenses SAD), no Liverpool, rival do FC Porto nos quartos de final da Liga dos Campeões.
Vítor Baía: "Não estávamos preparados"
A mudança de regra do atraso ao guarda-redes aconteceu em 1992. A partir de então, a bola passada por um companheiro ao guardião, desde que deliberadamente atrasada com o pé (ou parte da perna do joelho para baixo), não pode ser agarrada com as mãos. Os atletas portugueses não estavam preparados para esta mudança e Vítor Baía recorda-se bem das dificuldades que sentiu. "Na minha época não estávamos preparados para jogar com os pés. Quando mudou a regra do atraso ao guarda-redes, fui surpreendido pela mudança. Tinha 24 anos, era um guarda-redes feito! Só com muito trabalho e horas extra consegui ajustar-me. Tudo tem uma solução. Agora, todos os miúdos trabalham bem essa parte", conta o antigo internacional português. Só depois disso o treino de guarda-redes passou a contemplar trabalho com os pés.
Guarda-redes estava no FC Porto quando a regra mudou e assume que não havia preparação para segurar bola com os pés.
Tondela dá primazia a portugueses
Caso único no panorama nacional, o Tondela tem três guarda-redes no seu plantel e são todos portugueses. O titular, Cláudio Ramos (na foto) tem 2670 minutos de provas oficiais pela equipa beirã e as suas boas exibições valeram-lhe, em setembro de 2018, a sua primeira chamada à Seleção Nacional A, um desejo que acalentava há muito. Diogo Silva ainda não se estreou e Pedro Silva tem 360 minutos, nas Taças da Liga e de Portugal. Porém, não é só na baliza que o Tondela tem grande número de portugueses: 60% dos atletas do plantel são lusos.
Apenas Casillas (espanhol) e Vlachodimos (grego) conseguem mais minutos do que brasileiros
No rol destes atletas, há três que despertam a atenção pelo número de minutos, mais de dois mil, não sendo titulares. Entre eles, apenas Douglas, do V. Guimarães, deixou a titularidade por decisão de Luís Castro, que passou a apostar no português Miguel Silva.
Em situação diferente estão Helton Leite (Boavista) e Jhonatan Luiz (Moreirense). Os dois guardiões lesionaram-se com gravidade. Beneficiaram, no caso axadrezado, Bracali (guarda-redes experiente no futebol nacional, onde chegou em 2006/07, e foi campeão pelo FC Porto em 2011/12), e Pedro Trigueira, no caso dos cónegos. O azar de Matheus começou bem mais cedo, e ditou paragem de meio ano, ainda a decorrer.
Importante nota para perceber o predomínio canarinho em Portugal é o facto de apenas dois guarda-redes terem mais minutos que os brasileiros apresentados no quadro abaixo: Iker Casillas (FC Porto) tem 3180 minutos em competição e Vlachodimos (Benfica) 3715. No entanto, representam equipas com participações em provas europeias, logo, com mais jogos e maior possibilidade de somar minutos.