<strong>O JOGO - 35 ANOS || 1987 || A VÉNIA DE PINTO DA COSTA - </strong>O FC Porto vence, em Viena, a sua primeira Taça dos Campeões, depois de três anos antes ter discutido a final da Taça das Taças. Escolhido como figura desse ano, Pinto da Costa seleciona o Coração da Cidade como instituição inspiradora
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Na anatomia do Porto, o Coração da Cidade é fácil de perceber. Edifício cuja alvura o Sol não se cansa de afagar, destaca-se na paisagem árida da Rua de Antero de Quental pela luz que irradia, um par de quilómetros para lá do centro, de onde tudo começou, em 1996, num tempo em que a Baixa era o oposto do fulgor atual.
Ali, não há números. Há pessoas que precisam de ajuda e cerca de 150 voluntários dispostos a trabalhar pelo conforto alheio
É de calor que se trata, desde o início do projeto que tem por fim "dignificar a pobreza" e por rosto La Salete Piedade, 68 anos irrequietos, obstinados na missão de ajudar os mais vulneráveis às voltas que o mundo dá. Os sem-abrigo, os emigrantes de Leste, as famílias carenciadas e as endividadas, a versão mais recente e também a mais resistente a esse passo de procurar ajuda para subsistir, nota, todos têm a porta aberta e são a história destas décadas.
Recuamos aos anos 1990: "Nós instituímo-nos para dignificar a pessoa sem abrigo, porque na cidade não havia dignidade na aproximação a essas pessoas. Então, realizámos o nosso sonho: sentar as pessoas à mesa". "Trouxe-os para dentro de casa", conta, feroz defensora da dignidade na ajuda. "Meti toalhas nas mesas, fiz cortinas com folhinhos. Preparei-lhes uma sala de jantar como se fosse a mãe deles.
Com faca e garfo, com copos, com tudo aquilo a que tinham direito, com mesas redondas, que na vida das pessoas não deve ter esquinas", descreve, e é como se voltasse àquela sala. "Comecei a dar sopinha a uma pessoa. Quando dei por ela, dava o jantar a 1200 por dia. Não havia espaço que chegasse. Havia 300 voluntários, praticamente, mas não havia espaço".
Era preciso uma casa maior e esta de Antero de Quental seduziu La Salete Piedade pelo simbolismo de uma "buganvília lindíssima, lilás", a cor da Associação Migalha de Amor - Grupo Espírita de Fraternidade Cristã de que o Coração da Cidade é o ramo social. O preconceito relativamente a esta doutrina religiosa explicará parte dos anticorpos que, ao longo dos anos, o Coração da Cidade despertou numa faixa da sociedade pouco esclarecida ou simplesmente avessa ao contacto com a pobreza. A mudança para as instalações atuais foi uma das lutas ganhas.
Esta é uma causa teimosa que Pinto da Costa abraçou
Hoje, cruza-se a porta e à direita entra-se no Mercado dos Anjos, a recriação, em ponto pequeno, das prateleiras dos supermercados a que nem todos podem aceder. Nas entranhas do prédio, voluntários separam os bens recolhidos nas lojas Pingo Doce.
Para quem não pode cozinhar, há de haver refeições prontas a levar: "Desde 2015, criámos um programa preventivo, estamos a atuar nessa prevenção à rua. Ou seja, nós damos de comer e as pessoas, com o pouco que têm, pagam pelo menos o aluguer. Temos o serviço de take away e um serviço alimentar para pessoas que ainda podem cozinhar, Do Coração para o Fogão, e Do Coração para a Mesa, porque nem toda a gente pode cozinhar, por uma série de motivos. Quase sempre, falta de recursos, nomeadamente, quem está em quartos, pessoas sem-abrigo. Para lá da alimentação, há também o programa AI, Apoio Imediato, para aquelas pessoas que não têm nada e chegam aqui e dizem ai".
"Para elas temos banho, farmácia, comida, sorriso, temos tudo", descreve, com o tal sorriso, tão importante para receber com calor como as cortinas de folhinhos da primeira casa. O amor não descura os pormenores.
Em nome da Mãe
La Salete Piedade deu vida ao Coração da Cidade quando "não tinha nada que fazer". Enviuvara e a nova fase da vida devolveu-a a uma promessa da infância. "Fui criada num orfanato, vivi sempre em comunidade e uma das coisas que mais me chocou foi que a minha Mãe teve de me deixar pelo caminho porque não tinha que comer".
Um dia, "tinha sete anos", fugiu de casa, "por motivos que são muito feios". "Eu não sabia se fugi com medo ou com fome", conta, olhos molhados. "Agasalhei-me ao pé de uma guarita que a Ponte D. Luís tinha, onde estava a polícia". Descoberta a "tremer de frio", um agente deu-lhe "um bocado de café": "Lembro-me que disse ao polícia: quando for grande, vou dar de comer a toda a gente."
É o que tem feito e incentivado a fazer: "Quando abri o primeiro mercado, chamei-lhe o Bolhãozinho, disse para mim: não sei se faço isto em nome da pobreza, mas em nome da minha Mãe eu faço. Há muita mulher que vem aí e eu olho e não as vejo a elas, vejo a minha Mãe."