A vénia de José Mourinho a Artur Jorge: "Injusta, a nossa típica memória curta"
<strong>O JOGO - 35 ANOS || 2003 || A VÉNIA DE JOSÉ MOURINHO </strong><strong>- </strong>Começa a saga do Special One, com o regresso do FC Porto aos títulos e a vitória na Taça UEFA. Convidado por O JOGO a escolher aquele que merece a sua vénia, José Mourinho fez a sua vénia a Artur Jorge
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"Fizemos coisas bonitas" foi expressão que se lhe ouviu amiúde nos tempos do FC Porto e da Seleção. Bonito era um termo descontextualizado mas genuíno para quem o futebol tinha "momentos plasticamente muito belos".
"Houve um presidente do Benfica (...) que foi ter com ele a Paris e lhe prometeu um investimento grande"
Na origem estava o trabalho. Duro e inovador, aqui e ali difícil de entender mas sempre apontado ao alto. Ganhar mais e mais, abater barreiras, como se a conquista de um título europeu com o FC Porto fosse - pudesse ser... - uma utopia coletiva. Não era, mas tinha passado pela cabeça de um grupo restrito e à frente do projeto estavam os homens certos. Artur Jorge foi o primeiro treinador português a sagrar-se campeão europeu, em 1987. A porta do sucesso estava aberta para o próprio e para os vindouros.
José Mourinho é o treinador português de maior sucesso internacional. Também ele sonhou mais à frente e investiu em derrubar limites. Antes do mercado do futebol enlouquecer de vez e limitar ainda mais as esperanças, repetiu o feito de quem o inspirou e foi mais além. Para Mourinho, Artur Jorge fica para a história como o primeiro técnico português campeão europeu, mas também, e acima de tudo, como "um homem de classe que marcou uma classe", como escreveu no catálogo do leilão de arte quando a família alienou parte do acervo do treinador-colecionador, num tempo recente em que uma enfermidade já o retirara da vida pública.
"Artur Jorge? Memória curta do futebol português. O que foi, o que fez, o que ganhou, o que significou como treinador que se formou para ser treinador. Merece mais destaque, merece que as novas gerações o conheçam melhor. Injusta a nossa típica memória curta, em especial para com pessoas que decidiram não alimentar a memória dos outros. Para mim, grande Míster sempre e por mim será sempre respeitado como um grande", escreveu então Mourinho.
"Ele mudou tudo. Estava muito à frente. Estávamos habituados sempre ao mesmo"
Depois de uma carreira apreciável como jogador, compatibilizada com uma licenciatura em Filologia Germânica, Artur Jorge fez-se treinador em Leipzig, na Alemanha de Leste, transpondo o Muro de Berlim e todos os outros muros de um percurso rumo ao sucesso. Era um tempo de esperança. No final da década de 1970, José Maria Pedroto tinha diagnosticado o mal do futebol português para ser competitivo a nível internacional: faltavam-lhe 30 metros.
O mestre envolveu-se nessa missão e o crescimento do FC Porto foi notório antes de ser notável. A final da Taça das Taças, 1983/84, um ano depois de o Benfica de Eriksson ter ido à final da Taça UEFA, selou de vez a certeza de ter sido encontrado o caminho. Pedroto estava no fim da linha e havia indicado Artur Jorge como possível sucessor. Pinto da Costa fez-lhe a vontade e começou a construir a lenda.
Artur Jorge tinha ido beber a um futebol diferente, de inspiração soviética, com grande apelo ao rigor mas sem perder os padrões criativos e técnicos ajustados ao futebol português. Trouxe novas formas de treino. Raul Águas, escudeiro do Rei Artur desde meados dos anos 1990, recorda esses tempos.
"Ele mudou tudo. Estava muito à frente. Estávamos habituados sempre ao mesmo: terça e quarta grandes cargas físicas, quinta peladinhas, sexta treino de conjunto. Ele rompeu com isso, trouxe o treino por setores e as bolas paradas", conta Águas, conhecido de muitas luas, porque muito antes de formarem equipa foram colegas e adversários, como futebolistas e também como treinadores. "Conheço-o desde sempre, até fui jogador dele no Portimonense".
Favorito 15 anos depois
Três épocas consecutivas no FC Porto valeram ao clube dois campeonatos nacionais (1984/85 e 1985/86) e uma Taça dos Campeões Europeus (1986/87) e o deslumbre de ver atuar Futre e Madjer, a par de Gomes, André, Jaime Magalhães, Frasco e muitos outros.
O título europeu foi um feito gigantesco, talvez o último festejado com sentimento nacional. Logo a seguir a rivalidade tornou-se insana e não voltou a haver desígnios pátrios fora do âmbito da Seleção Nacional. Na final de Viena o FC Porto defrontou o gigante Bayern Munique, acabado de derrubar o Real Madrid nas meias-finais, etapa na qual os portistas deixaram para trás o Dínamo de Kiev (dupla vitória por 2-1). Para Artur Jorge, o Dínamo, de Blokhin, Zavarov ou Belanov, treinado pelo mestre ideólogo Valeriy Lobanovsky, era a melhor equipa do mundo. Se essa ficara para trás, ninguém mais metia medo.
No seu jeito discreto de ser e de estar, Artur Jorge demorou 15 anos a revelar o estado de alma antes da final do Prater. No dia da evocação do 15º aniversário do triunfo portista, disse a O JOGO: "Entre nós, considerávamo-nos favoritos. O Bayern era o favorito de toda a gente e isso era bom para nós, mas sabíamos que se jogássemos aquilo que podíamos e sabíamos, ganhávamos. Foi assim".
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Raul Águas: "Ser humano maravilhoso"
Ambos tinham carreiras firmadas, eram adversários desde que o primeiro treinou o segundo. Por isso causou estranheza que Águas se tornasse adjunto de Artur Jorge. Há uma razão, e depois outra e outra a seguir. "Convidou-me para ir com ele para a Seleção quando lá esteve pela primeira vez [1989/91], mas não pude aceitar. Estava a trabalhar. Quando voltou à Seleção, em 1996, voltou a convidar-me e eu estava disponível. Aceitei com todo o prazer e depois fui continuando a trabalhar com ele", afirmou a O JOGO Raul Águas.
Para quem tinha sido primeiro desde o início da carreira, ser segundo não foi problema para Raul Águas: "Apesar de ser ele o chefe, era eu quem dava o treino e isso para mim era importante. O resto é fácil de explicar: eu sou mesmo assim, afeiçoo-me às pessoas. E o Artur Jorge, para além de grande treinador, é um grande homem, um ser humano maravilhoso".
Daí terem trabalhado juntos desde 1996 até 2007, e mais tarde, após um interregno de sete anos, numa derradeira aventura na Argélia, ao serviço do MC Alger em 2014/15.
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Passou no Benfica errado
Treinar o Benfica depois de ganhar tudo no FC Porto foi para Artur Jorge um pecado. Chamaram-lhe sonho e objetivo, mas será mais correto falar em desafio. Perdido! Dentro e fora do campo. A influência do clube da águia fez dele um mal-amado. Raul Águas, o adepto benfiquista - "pertenço à única família que tem três campeões no clube, o meu tio José Águas, o meu primo Rui e eu" - conhece a história desde sempre e fala dela com mágoa.
"Houve um presidente do Benfica cujo nome não vou dizer, que foi ter com ele a Paris e lhe prometeu um investimento grande. A equipa precisava de ser renovada e ofereceu-lhe dez aquisições à escolha. Foi em dezembro. O Artur estava envolvido na luta pelo título no PSG e disse-lhe que se ainda estivesse interessado voltasse em março ou abril".
Manuel Damásio (o nome que Águas não disse) e Artur Jorge entenderam-se quanto ao compromisso, mas no resto... "Depois de ter dispensado jogadores que poderiam ser importantes, teve de trabalhar com reforços de segunda escolha. Sujeitou-se a ir para um projeto que já não era o dele. Correu mal mas a culpa não foi dele. E para ir para o Benfica recusou o Inter de Milão".
Para Raul Águas, Artur Jorge "teve o azar de entrar no Benfica errado". "Aquele Benfica não tinha nada a ver com o atual nem com o do passado, estava a viver uma fase muito difícil. Acreditou em quem não cumpriu as promessas. No Benfica de hoje teria feito maravilhas".
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Palmarés
Artur Jorge Braga de Melo Teixeira
74 anos
Treinador de futebol
FC Porto
1 Taça dos Campeões Europeus
3 Campeonatos Nacionais
1 Taça de Portugal
3 Supertaças Cândido de Oliveira
PSG
1 Campeonato de França
1 Taça de França
Al-Hilal
1 Liga da Arábia Saudita
1 Taça das Taças da Ásia
CSKA
1 Supertaça da Rússia