Vale a pena recordar a entrevista que o surfista de ondas gigantes deu este verão à J. McNamara fala da sua infância, da sua filosofia de vida, dos medos e dos filhos, mas também de como é importante que, apesar de crise, os portugueses se lembrem do país fantástico onde vivem.
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"A patroa é que manda", afirma Garrett McNamara quando lhe pedem mais uns minutos no local. Nicole passeia pela areia, com o pequeno Barrel pela mão. "Temos de ir embora", tenta o surfista, ao mesmo tempo que, incansável na simpatia, distribui sorrisos, autógrafos e aceita o pedido do repórter fotográfico Henriques da Cunha para entrar, de novo, na água, para uma fotografia diferente.
Foi na manhã a seguir ao último dia do festival NOS Alive, no passeio Marítimo de Algés, que decorreu a conversa com Garrett McNamara, no areal da praia do Baleal, em Peniche, onde o surfista esteve a dar aulas a crianças e jovens com deficiência e necessidades especiais, no âmbito do projeto Buondi Surf Sessions, que termina hoje na Costa da Caparica.
Não teve nenhum amigo a tocar no NOS Alive? O Ben Harper é um apaixonado pelo surf.
A sério? O Ben Harper esteve cá a cantar? Ninguém me disse. Não o conheço muito bem, mas já estive com ele. O Jack Johnson é que conheço muito bem.
O Eddie Vedder, dos Pearl Jam, também é seu amigo, certo?
Não. Acho que nunca estive com ele. Ou se calhar sim. É tanta gente que já nem tenho a certeza. Acho que o conheci no Havai.
Tem passado este mês em digressão por várias praias do país, a dar aulas a crianças com deficiência e/ou necessidades especiais. Quer falar um bocadinho deste seu novo projeto?
Gosto de partilhar o meu amor pelo mar com os miúdos que não tiveram ou nunca vão ter as mesmas oportunidades que eu tive. Quanto tinha 11 anos, mudei da Califórnia para o Havai, vinha de um ambiente muito pobre, em que não havia dinheiro, e o mar era um sítio onde se podia ir curtir, sem interessar mais nada. Eu tive sorte, tive a possibilidade de mudar a minha vida.
Sempre viveu junto ao mar?
Desde os 11 anos. Antes disso, o meu pai costumava levar-nos ao mar, mas depois a minha mãe deixou o meu pai e quis tentar a vida no Havai. Como não tinha emprego e com dois filhos pequenos, o Estado americano pagava-lhe um pequeno subsídio mensal e era assim que sobrevivíamos. A nossa prancha era velha e toda a gente tinha a prancha perfeita. A nossa bicicleta era velha e toda a gente tinha a bicicleta perfeita. Tínhamos o que precisávamos, mas não tínhamos o que queríamos.
É essa experiência de vida que quer, portanto, transmitir às crianças.
Sim. E algumas crianças talvez nunca tenham outra possibilidade de vir a fazer surf. O mar é um local onde podem ir desfrutar e sentir-se bem, independentemente de a vida lhes estar a correr mal ou bem. A mensagem que gosto de transmitir é que não interessa de onde vêm ou o que têm. Se têm um sonho, podem seguir esse sonho e viver a sua paixão. Se eu consegui, todos podem conseguir.
Inspira-se na sua própria vida?
Foi a vida que me ensinou. A minha principal inspiração tem sido a minha mulher Nicole e ler alguns livros muito bons do Deepak Chopra. Leio livros dele todos os dias, tornam a vida fantástica, ensinam-nos a praticar a aceitação.
Tem uma filosofia budista?
Vem, de facto, da Índia, mas é um pouco diferente. Tem a ver com a ideia de tudo estar ligado entre si. Se nos olharmos nos olhos uns dos outros, podemos dizer que somos a mesma coisa.
Falou da sua infância de pobreza. Quando é que a sua vida mudou?
Com cerca de 17 anos, tornei-me profissional de surf. Mas foi por acaso. Depois, aos 35 anos, quando resolvi reformar-me do surf e abrir uma loja, percebi qual era o meu objetivo, pois não estava a divertir-me nada. Decidi que tinha de voltar a surfar. Coloquei as palavras "keep surfing" [trad. continuar a fazer surf] num papel e foquei-me naquilo. Todos podem fazê-lo, só têm de escrever em papéis o seu objetivo e espalhá-los pela casa: na casa de banho, na cozinha, no quarto, de modo a que todos os dias saibam qual é o seu propósito.
A vida não faz sentido sem um objetivo?
Podemos apenas vaguear pela vida, mas é bom ter objetivos e atingi-los.
Não há já demasiada pressão na sociedade ocidental para se atingirem objetivos?
Somos um produto da nossa sociedade, fazem-nos lavagens cerebrais para irmos pelo caminho errado. Refiro-me às pessoas que fazem dinheiro à nossa custa. Nós somos peões de um grande jogo de xadrez dos homens poderosos, com muito dinheiro. Mas, mesmo assim, temos sorte, muitas pessoas africanas ou indianas, por exemplo, não podem dizer a mesma coisa. Em Portugal vocês vivem no paraíso. Portugal é maravilhoso e todas as pessoas que vivem aqui têm a oportunidade de tornar a sua vida agradável. Era bom que todos tivessem a capacidade de ver como este país é o paraíso. Não vivemos em África, onde se mata todos os dias, não sabemos o que é uma guerra verdadeira e a sociedade quer fazer-nos pensar que é tudo muito mau, mas não é! Uma mudança de consciência seria fantástico.
Vive cá?
Passo aqui quase metade do ano. Estou mais tempo aqui do que em qualquer outra parte do mundo.
Quando se reformar vai assentar na Nazaré?
Não me importava: o tempo é bom, a comida e a água são boas, o país é muito diversificado e fica perto de tudo. E este país é o melhor do mundo, porque as suas pessoas são as melhores do mundo. Gosto dos portugueses mais do que qualquer outro povo do mundo.
Está a fazer lembrar-me os concertos de bandas ou músicos estrangeiros em Portugal. Dizem quase sempre que somos o melhor público do mundo, calculamos que digam isso em todos os países onde vão tocar...
A sério? Nunca tinha pensado nisso. [risos] Se calhar eles sabem mesmo que os portugueses são os melhores.
Quando foi a primeira vez que ouviu falar da Nazaré?
Fui um pateta, porque achei que devia ficar em Israel, por causa de Jesus de Nazaré. Quando soube que era em Portugal fiquei espantado. Portugal não era um destino para ir. Não sabia onde era. Fazer surf na Europa era ir a França ou eventualmente à Irlanda. E agora Portugal é o meu destino número 1.
Quando fala de Portugal nos EUA, qual é a reação?
Ficam interessados e querem vir conhecer. Mas primeiro só querem vir ver as ondas grandes. Depois chegam, conhecem a comida, o vinho e adoram. Portanto, as ondas grandes são uma ótima maneira de atrair turistas. É engraçado que, por um lado, quero partilhar Portugal com o mundo, quero que toda a gente conheça este lugar fantástico; por outro lado, está bem assim, não quero isto cheio de gente [risos].
O Turismo de Portugal devia pagar-lhe...
Só digo o que sinto e o que conheço. E não me podem pagar para dizer o que quer que seja.
Não tem medo de morrer quando apanha as ondas gigantes?
Não. Sinto-me muito mais seguro no mar do que a conduzir na estrada, por exemplo. A probabilidade de morrer num acidente de viação é muito maior do que a de morrer no mar.
Li que chorou e quis desistir quando foi ao Alasca para surfar as águas dos glaciares.
Isso foi diferente, era um bocado de gelo que podia esmagar-me, não tinha hipóteses. Por isso é que só o fiz uma vez na vida [risos]. Na Nazaré divirto-me. E sei que vou viver uma vida longa, daqui a uns tempos vou ter netos e vou vê-los crescer.
O que mudou depois de ter sido pai?
Foco-me mais no que estou a fazer, treino e preparo-me mais, para que nada falhe. Antes de ser pai não me importava se morresse, porque amava tanto o que fazia. Assim que tive miúdos, soube que não iria morrer a fazer surf e trato de assegurar isso.
Quando está numa onda gigante pensa em quê?
Divirto-me. Vivo o presente. Quer dizer, às vezes penso que tenho de fugir da onda bem rápido, que ela vem a correr atrás de mim [risos]. Apesar de estar a viver o momento, tenho de me preparar e saber antever o que vem a seguir.
Qual o seu próximo objetivo?
Neste momento, o meu objetivo é partilhar o amor que tenho pelo surf e ajudar os meus amigos a atingirem os seus objetivos.
Já não quer ser a vedeta...
Nunca quis ser a vedeta. Não sou a vedeta. Portugal e as ondas gigantes é que são as vedetas. O recorde também não é meu, é de Portugal. Eu nem queria registar o recorde, fi-lo porque os meus patrocinadores e os portugueses quiseram. Eu não surfo por recordes. Surfo por diversão.
(Publicado na revista J de 19 de julho)