"Uma época de sonho", sintetizou Mário Narciso, o selecionador nacional de futebol de praia. Portugal juntou o título na Superliga Europeia, deste fim de semana, ao Mundial, conquistado em Espinho em julho, e à medalha de bronze nos Jogos Europeus de Baku. Após o Campeonato do Mundo, o técnico deu uma entrevista à J.
Corpo do artigo
Na véspera da final, ficou até tarde a jogar cartas com os colegas e depois dormiu que nem uma pedra. Após os festejos de domingo, já foi mais difícil pegar no sono. Ficou a ver a repetição do jogo com o Taiti até quase às cinco da manhã. E voltou a enervar-se! Mário Narciso, 61 anos - o homem que garantiu para Portugal o primeiro título mundial de futebol de praia com a chancela da FIFA.
Apareceu de boné, mas tirou-o durante a entrevista que decorreu no Parque Urbano da Albarquel, em Setúbal, já a caminho da Arrábida, seu local preferido para longos passeios a pé, especialmente no inverno, pela serra e pelas praias. Mas regressando ao boné, nos jogos só o tira para ouvir o hino de Portugal. "Tenho-me dado bem com o boné. Não quer dizer que tenha ganho sempre, mas tenho ganho mais do que perdido. Portanto, vou continuar a usá-lo", comenta Mário Narciso, menos de 48 horas após a conquista do título nacional.
Ainda se sente numa espécie de nuvem?
Continuo a receber muitas mensagens e as pessoas aqui em Setúbal vêm felicitar-me, mas estou com os pés na terra. Sou uma pessoa realista. Hoje, já retomei o meu trabalho na secretaria e no departamento de sócios do Vitória de Setúbal. Só na noite de domingo para segunda-feira, depois da final e de toda aquela excitação, é que me custou muito a adormecer.
Como foram o festejos?
Fomos convidados pelo presidente da federação para ir jantar ao Hotel Solverde e ficámos por lá até à uma da manhã. Quando chegámos ao hotel, tínhamos a seleção de Itália, que ficou em quarto lugar, no hall de entrada, à nossa espera para nos cumprimentar. Ficámos muito sensibilizados com o gesto. Quando fui para o quarto, liguei a televisão, logo na hora em que a repetição do nosso jogo estava a começar. Vi o jogo todo e deixei-me dormir pelas 5h00. E às 7h30 já estava acordado.
Como foi ver o jogo outra vez?
Mesmo sabendo o resultado, voltei a enervar-me! A minha mulher é que costuma dizer que, qualquer dia, ainda me dá uma coisa... [risos].
E na véspera da final com o Taiti, conseguiu dormir?
Sim. Fiquei com a equipa técnica, com os médicos e o restante pessoal a jogar cartas. Pedi-lhes para ficarem comigo mais um bocadinho, para que quando chegasse à cama tivesse sono. Estivemos a jogar até perto da 1h30. Cheguei à cama e nem pensei no jogo do dia seguinte: deixei-me logo dormir e só voltei a acordar com o despertador. Quando me levantei, desliguei o telefone. Tenho um feitio muito extrovertido, gosto de me rir com os jogadores, de lhes contar histórias, mas no dia dos jogos fico mais reservado e concentrado. Não quis falar com ninguém.
Falou que ficaram a jogar às cartas. Jogaram o quê?
O jogo das copas. Toda a gente se ri, é mais pelo divertimento do que pela competição. Temos inclusivamente um ranking e um dos meus colaboradores, o Tiago, já fez um site que tem os nomes das pessoas que normalmente jogam. Sou eu, ele, o Bilro, o médico, o enfermeiro e o Manuel Silva, que é o secretário da federação.
Em que lugar está do ranking?
Vai chamar-me vaidoso, mas eles podem confirmar: neste momento, estou em primeiro lugar. E pode escrever na entrevista que o último classificado é o secretário da federação, que é o senhor Manuel Silva. Fazemos tudo para que ele perca [risos].
Lembrou-se de alguém em especial logo após o fim do jogo ou viveu apenas os festejos do momento?
Lembrei-me da minha família. E depois caí em mim e lembrei-me do meu pai [emocionou-se]. Se fosse vivo, iria sentir um grande orgulho. Toda a gente o conhecia e respeitava em Setúbal, era o Narciso. Espero que ele tenha estado lá em cima a ver.
O que muda este título mundial na sua vida?
Não penso que vá mudar a minha vida em termos profissionais. Pessoalmente fiquei bastante mais rico. Tenho tido a oportunidade de privar com gente de todo o mundo e preservo muito o sentimento da amizade. Fiz muitos amigos não só durante o Mundial, mas ao longo destes mais de dois anos na federação. Isso já é uma grande vitória para mim.
Aos 61 anos, ainda se sente um friozinho na barriga antes dos jogos?
Sim, isso vai manter-se sempre. Mas assim que começa o jogo, já não me lembro de mais nada e os nervos desaparecem completamente. Só fico focado no jogo.
Como foram os festejos que não se viu na televisão?
Tenho uma imagem que vou preservá-la para sempre. Foi quando o Humberto Coelho foi ao balneário, aquilo estava uma loucura, eram banhos de cerveja por todo o lado, e apesar de conhecer o Humberto há muitos anos, nunca o tinha visto tão emocionado. Estava a ver que lhe dava uma coisa. Vi nesse momento a grande amizade que sente por mim e por toda aquela equipa com quem conviveu durante o Mundial.
Os seus jogadores não lhe conseguiram rapar o bigode?
Eles bem tentaram, mas não conseguiram. Sabe, eu falei-lhes ao coração, o meu neto de cinco anos tinha ouvido essa história de eu vir a cortar o bigode se Portugal ganhasse o Mundial, e telefonou-me para me pedir três coisas: que lhe levasse uma bola de futebol das novas e uma daquelas bailarinas que estão ao intervalo. E também me pediu que não cortasse o bigode. E eu disse-lhe: "olha Santiago, difícil vai ser a bola, a cheerleader é mais fácil, mas não a levo porque elas comem muito, e para comer já há muita gente em casa". [gargalhada]. Os jogadores sensibilizaram-se com o pedido do meu neto, mas prometo que se ganhar o Mundial das Baamas, daqui por dois anos, corto mesmo o bigode.
Já usa esse bigode há muitos anos?
Desde a tropa, há 41 anos. Só o cortei uma vez e sem querer. Tinha 26 anos, estava a jogar em Guimarães e os jogadores têm a mania de fazer a barba na sauna. Um dia, dei um corte no bigode, quando saí da sauna e vi, estava uma vergonha, parecia o Hitler. Então cortei-o. Quando cheguei a casa e o meu filho, ainda pequenino, abriu a porta, gritou para a mãe: "mãe, mãe, o pai tem a boca cheia de dentes" [gargalhada]. Normalmente não os via porque estavam tapados pelo bigode.
SAIBA
QUE
Mário Narciso teve uma carreira discreta como jogador, grande parte passada no Vitória de Setúbal, onde chegou a ter como colega Jorge Jesus. Tirou o curso de treinador UEFA Pro [nível 4] quando ainda jogava e começou o seu percurso de técnico como adjunto de Quinito. "Andei com ele por Leiria, Marítimo, Portimonense, Vitória de Setúbal. A determinada altura, afastei-me da carreira de treinador, porque os meus filhos precisavam de acompanhamento na escola", recorda. Narciso acabou por ficar em Setúbal, sua terra natal, e ir trabalhar para a empresa de carros de Fernando Oliveira, atual presidente do clube sadino. "Nesse espaço de tempo, tive a oportunidade de ir trabalhar para a escola do Humberto Coelho. E quando apareceu o futebol de praia e o Vitória formou uma equipa, já tinha jogado a brincar na praia e lembraram-se de mim para treinador." O agora selecionador nacional liderou o futebol de praia dos vitorianos até há pouco mais de dois anos, quando assinou pela Federação Portuguesa de Futebol.
1 000 000
Foi ainda no decorrer da fase de grupos, no dia 13 de junho, quando Portugal ganhou à Argentina (7-2), que o Mundial de futebol de praia de Espinho atingiu o marco histórico de um milhão de espectadores, contabilidade feita a partir do momento em que a FIFA começou a organizar a prova. Mário Narciso não se esqueceu de agradecer o apoio do público presente nas bancadas, assim que Portugal se sagrou campeão ao vencer o Taiti (5-2). "Impressionou-nos muito ver aquela gente toda em Espinho. Às vezes, estávamos no hotel antes dos jogos e víamos na televisão aquelas filas de quilómetros, com pessoas a acampar. Isso tocou-nos muito", declarou, admitindo que não teria a mesma paciência que os adeptos. "Sou sincero, não faria tal coisa. É de dar valor a essas pessoas. Não sei se teria acontecido a mesma coisa se o Mundial se tivesse realizado noutro sítio. Em Espinho, parece que as pessoas são mais apaixonadas. É a gente do Norte", comentou.