
Ainda na ressaca da festa do bicampeonato do Benfica, recordamos a entrevista de Susana Bexiga, uma das poucas mulheres em Portugal que é Presidente de Casa do Benfica, neste caso de Alhandra. Empregada bancária, 42 anos, é prova de que a paixão por um clube, seja ele qual for, é algo absolutamente irracional.
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O que faz uma mulher, formada em gestão, que trabalha num banco e tem uma filha, ser presidente de uma Casa do Benfica?
O meu amor ao Benfica, só isso! Adoro o Benfica, é uma paixão que tenho desde sempre.
De onde veio essa paixão?
Não sei. Toda a gente me pergunta isso, mas nunca sei responder.
Qual a primeira recordação que tem do Benfica?
Lembro-me de ir com o meu avô e padrinho ao estádio. Teria uns 10 ou 11 anos. Fomos ver um jogo da Taça de Portugal, ainda o Paulo Padinha, que é aqui de Alhandra, jogava. E também lembro-me de ouvir os relatos no rádio. São estas as recordações mais antigas que tenho do Benfica.
Possivelmente o seu avô passou-lhe a paixão pelo clube.
Se calhar, não sei dizer. Ele gostava do Benfica, mas não era nada ferrenho.
O que a encantou no Benfica? As cores?
Não sei. Não tenho recordação do porquê. Uma vez tentei ser do Sporting [risos]. Já andava no ciclo ou na escola secundária e tinha amigas e amigos que eram do Sporting. E eu disse para mim: "se calhar vou ser do Sporting". Mas nem consegui dizer tal coisa. Perguntavam-me de que clube era e eu engasgava... [risos]
Gostava do jogo de futebol em si?
Era pelo Benfica, não pelo futebol. Depois, comecei a ver os jogos e agora adoro futebol. E vejo tudo o que posso, mesmo que não seja o Benfica a jogar.
Consegue ler o jogo e distinguir as táticas?
Não sou muito entendida, porque na realidade isso não me interessa muito. Eu quero é que o Benfica ganhe. Às vezes perguntavam-me, a seguir a um jogo, se as equipas tinham jogado bem e eu não sabia responder. Só quero que o Benfica ganhe e marque muitos golos.
Então não é uma treinadora de bancada...
Não sou. Eu agora consigo ver se estão a jogar bem ou mal, mas não dou táticas. Comigo é uma coisa mais emocional, de gritar e chorar...
Vai a todos os jogos?
Vou a todos os jogos do campeonato, da Liga dos Campeões e da Liga Europa. Já não vou tanto aos da Taça de Portugal e da Liga. Todas as minhas amigas sabem que, em dia de o Benfica jogar, não há cá festas de aniversário nem programas. É tudo agendado conforme o Benfica joga em casa ou não. No início da época, faço logo o planeamento.
Isso dura há quanto tempo?
Fiz-me sócia do Benfica assim que comecei a trabalhar, aos 23 ou 24 anos. Os meus pais não estavam dispostos a pagarem-me as quotas e, assim que tive o meu primeiro dinheiro, fiz-me sócia. Depois casei, o meu ex-marido também era do Benfica, e íamos com frequência ao estádio. Às vezes ele não queria ir, estava a chover torrencialmente ou muito frio, mas eu insistia. Quando a nossa filha tinha uns seis ou sete anos, comprei um cativo para mim e para ela. E agora a Carolina já é pior do que eu, percebe a tática e manda vir com a equipa. Ainda não sabia falar e já dizia Benfica. Isso já não aconteceu comigo... Chorei tanto quando o Eusébio morreu. Tanto!
Lembra-se de o ver a jogar ou conheceu-o pessoalmente?
Nada. Nunca o vi jogar e nunca falei com ele, mas adorava-o.
A ligação ao Benfica é o que a sua vida tem de mais irracional?
A minha parte emocional vem ao de cima com o Benfica. E sou muito certinha nas minhas coisas. Se calhar aproveito o Benfica para extravasar. Sofro tanto. Só quem sente o amor a um clube é que consegue perceber isto. Por isso, eu percebo bem os meus amigos sportinguistas e portistas. Sentimos que o clube é nosso.
Na cerimónia dos Óscares, de há uma semana, Patricia Arquette, que recebeu o Óscar de Melhor Atriz Secundária, apelou, no seu discurso, à igualdade de direitos das mulheres. Ainda sente algum tipo discriminação enquanto presidente da Casa do Benfica de Alhandra?
Não. De todo. Sou respeitada, nunca senti desprezo ou que as pessoas me desvalorizam por ser mulher, pelo contrário, acho que até é bem visto. Claro que isto ainda é um ambiente maioritariamente masculino. Eu até acho que têm mais respeito por ser mulher.
Quando entra na Casa do Benfica, os sócios mudam de comportamento ou de maneira de estar?
Ficam mais em sentido [gargalhada]. Querem pagar-me bebidas e eu, às vezes, alinho com eles. Jogo à sueca. No ano passado, até me qualifiquei, com uma amiga, para a final do campeonato da sueca no Estádio da Luz. Eu também tenho um bocado de mau feitio e, às vezes, quando é preciso, ponho-os na linha. No outro dia, dois sócios mais velhos tiveram uma discussão, tive de me ir meter no meio para os acalmar. Dizia: "por que se estão a zangar? São amigos há tantos anos..."
Como a tratam?
Por Susana, presidente, chefe ou patroa [risos]. Acho graça.
Usa o facto de ser mulher como arma para alcançar mais facilmente o que quer?
As mulheres têm outra sensibilidade e forma de ver e fazer as coisas. O jeito de uma mulher, seja aqui ou noutra área qualquer, é diferente da do homem. Nessa medida acho vantajoso ser mulher.
Voltando às declarações de Patricia Arquette, ainda faz sentido as mulheres reivindicarem direitos, nomeadamente no mercado de trabalho?
Felizmente a diferença começa a esbater-se, as mulheres estão a ocupar cada vez mais cargos de importância, são tão competentes ou mais do que os homens e conseguem aliar uma maior sensibilidade a certos temas. Basta olhar para uma empresa e ver que ainda há poucas mulheres nos cargos diretivos, mas as universidades estão cheias delas. São os dias de amanhã.
Esta entrevista pode ser, por si só, uma forma de discriminação? Uma discriminação positiva?
Não acho que seja. Acho que tem interesse falar de uma coisa que ainda não é muito comum. Por exemplo, um homem a dias, que faça limpezas na casa das outras pessoas, é uma coisa que também ainda não se vê, pois é um papel tradicionalmente de mulher. Aqui é o contrário.
Entrevistas como esta ajudam?
Ajudam a abrir horizontes. Se calhar, existem mulheres que vão ler esta entrevista e têm vontade de fazer alguma coisa tipicamente de homem. E eu vou encorajá-las. Imagine que, se me convidarem para ir às compras, não quero ir. Mas se me convidarem para ir ver o Benfica ao fim do mundo, embora lá! Os meus olhos começam logo a brilhar.
Gosta de jogar futebol?
Quando era miúda, jogava e bem. Mas nunca representei nenhum clube. Na escola, quando havia torneios, inscrevia-me e, muitas vezes, era chamada para substituir os rapazes. Até tinha jeito para aquilo.
NÚMERO 6
No Benfica são seis as Casas que têm atualmente mulheres na presidência. Para além de Susana Bexiga, que vai terminar o seu mandato em Alhandra em novembro próximo, também as Casas de Porto, Alvaiázere, Charneca da Caparica, Santiago do Cacém e Vila Real de Santo António têm mulheres no poder. O número ainda é residual mas, no Benfica ou em qualquer outro clube do mundo ocidental, tende a aumentar dado o crescente envolvimento das mulheres no futebol. Aliás, ao longo das últimas décadas, surgiram notícias pontuais de mulheres também presidentes de clubes, casos de Gisela Oeri no Basileia, Patrícia Amorim, no Flamengo ou Marlene Matheus no Corinthians, esta última ainda na década de 1990, entre outras.
KELVIN, KELVIN AQUELE GOLO...
Kelvin, atacante do FC Porto, de 21 anos, voltou para o Brasil, emprestado pelo FC Porto ao Palmeiras. E no regresso ao país natal teve o azar de sofrer uma entorse no joelho esquerdo logo na pré-temporada, que o manteve afastado dos relvados até há pouco tempo. Apesar de estar a milhares de quilómetros, Susana Bexiga dificilmente esquece este jogador. "Até hoje, o que custou mais foi perder o campeonato para o FC Porto há duas épocas. Chorei tanto, foi horrível!", diz a presidente da Casa do Benfica de Alhandra, que foi até Amesterdão e Turim assistir às recentes finais da Liga Europa, onde as águias marcaram presença. Em ambas perdeu, respetivamente, frente ao Chelsea e ao Valência.
"O último momento de grande tristeza foi a final da Liga Europa em Turim, na época passada. A minha filha chorou tanto também", comenta. Do lado das alegrias, nada como um título nacional. "Na última temporada, fui festejar, num autocarro aberto, para o Marquês de Pombal. Foi uma loucura!" Este domingo, Susana Bexiga repetiu a dose.«
SAIBA QUE
A Casa do Benfica de Alhandra tem cerca de 260 sócios, tendo sido inaugurada oficialmente pelo atual presidente do clube, Luís Filipe Vieira, em março de 2008. Susana Bexiga vai terminar o seu primeiro mandato em novembro próximo. Diz que nunca se tinha imaginado em tal aventura, até amigos que já pertenciam à Direção a terem desafiado insistentemente para se candidatar, há pouco mais de dois anos. Existem mais duas mulheres a ajudar no dia a dia da Casa. Susana Bexiga, de 42 anos, é licenciada em gestão e trabalha atualmente num banco. "Está a ser muito melhor do que estava à espera. Estou sempre a aprender", comenta.
(Com base na entrevista publicada a 1 de março na revista J)
