FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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Todos os anos, quando os clubes da primeira liga entram no sorteio, a Taça espalha pelo país o seu perfume democrático e devidamente condicionado pela obrigação de os mais fortes terem de jogar em casa dos mais fracos.
Quem observa o país dos sofás opinantes de Lisboa consegue ser às vezes mais provinciano do que a província que festeja as eliminatórias da Taça
Nas vilas bafejadas pela tômbola, há adeptos partilhando devoções entre o clube da terra e um dos grandes. Em campo, a equipa anfitriã sonha com a possibilidade remota duma façanha para mais tarde recordar, como no anúncio da Kodak, mas trabalha o sonho com afinco.
Foi assim em Vila Verde, Anadia, Machico, Caldas, Felgueiras. Nas Caldas, as televisões montaram arraial um dia antes para ouvir transeuntes, clientes de cafés, lojistas, e enalteceram o investimento camarário de duzentos e cinquenta mil euros num relvado novo, qual lição de bem receber o Benfica. Pior esteve o Varzim, obrigado a receber o Sporting em Barcelos por impedimentos do estádio poveiro.
No fim da ronda, metade da primeira divisão foi ceifada por clubes de segunda, terceira e quarta categorias. As análises ao fenómeno foram dos sinais de mudança nas assimetrias do país ao acaso meritório que o futebol se lembra às vezes de abençoar. Talvez tenha sido isso, um acaso meritório, até porque as escolas do mesmo país não se cansam de formar gente em vários saberes desportivos. E alguma dessa gente lança-se a treinar e organizar clubes em locais onde ainda mora gente que se une em torno da velha noção de clube - cujo fim sempre foi o de agregar gente. E esses clubes criam, como podem, condições para pôr em prática esses saberes disponíveis.
A Taça é o reflexo esporádico desse país cheio de diplomas mas que vive inclinado sobre o litoral. Quem o observa dos sofás opinantes de Lisboa consegue ser às vezes mais provinciano do que a província que festeja as eliminatórias. O tom oscila entre o elogio ao David corajoso e a irritação contra o Golias que, por inércia ou altivez, se deixa abater pela fisga. Foi isso que ouvi dum senador do comentário televisivo ao zurzir mais o Sporting do que a valorizar o feito do Varzim cometido em campo neutro. O melhor veio quando ele decretou a ilicitude do golo poveiro - fora-de-jogo posicional dum jogador que placa outro numa zona onde a bola não estava. Mas lei é lei. Ao contrário, seria um acidente de jogo não merecedor dum asterisco. Assim, deu o sermão da verdade desportiva, sem omitir a valentia do Varzim, para atestar a sua isenção analítica.
No caso das Caldas, o oráculo gabou o esforço da autarquia, a região, a festa, o ambiente, o árbitro, o desinibido futebol atacante dos da casa, tudo lubrificado por imagens como "cair de pé" e "meio tomba-gigante". Tivesse o Caldas seguido em frente nos penáltis e a obra de Schmidt seria reavaliada, tal qual António Silva, já promovido a novo Humberto Coelho.
Conclusão: viva a Taça de Portugal, esse bilhete com prémio no Jamor e que vai fazendo a prova de vida da província. O atrevimento enfeita a sala-de-estar dum país que se quer dinâmico - desde que a província nunca perca a noção do seu lugar.