Não ter vergonha de assumir figuras tristes é o novo “Yes!” do reality--show urbano. É o Yes I Can vindo do bueiro, validado por cavernícolas que vão reeducando as massas na sua metódica ascensão ao poder
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Talvez o “heckler” tenha contribuído para me tornar um adepto de sofá. O termo “heckler” carece de boa tradução, mas abrange o “melga” sem filtro, o furioso que insulta o adversário por ser o adversário, o árbitro por ser o árbitro. Podia ser um hooligan se não temesse ser chateado pela polícia; ou até um “casual”, se a sapatilha e o capuz de marca não fossem tão caros.
Convivi com um antepassado seu no defunto estádio Vidal Pinheiro, onde às vezes assistia a um tórrido Salgueiros-Leixões. Poucos metros separavam a linha lateral do primeiro degrau da bancada; a meio, uma rede que mãos febris sacudiam ao mesmo tempo que, mais acima, as vozes açoitavam a tarde de domingo com o maciço vernáculo tripeiro. E o que parecia ser um respiro do operário, do pescador, do caixeiro para aliviar o nó da semana de trabalho (na impossibilidade de idas regulares às termas do Luso), era só uma pulsão transversal a todas as classes sociais.
Confirmei-o mais tarde na tribuna do Dragão, num FCP-Fenerbahçe, ao lado de um convidado que podia ser um banqueiro por fora, mas por dentro era um “heckler” acabado. Embirrou com o defesa esquerdo Lino e chamou-lhe cabeçudo do começo ao fim do jogo, enquanto olhava em redor para obter aprovação. Às tantas, Lino faz o terceiro golo (3-1) e ele grita: “Ó Lino, não é por molhares o bico que deixas de ser um cabeçudo!”. Segundo o jornal Guardian, o “heckler” saiu do seu espaço tradicional – o estádio, o pavilhão de rock, a sala de stand up – e invadiu lugares até hoje intocáveis, como o teatro. No norte de Inglaterra há relatos de jovens perturbando peças de Shakespeare com bocas aos actores e às personagens (talvez o Falstaff Pançudo, o Ricardo Marreco, o Hamlet Panhonhas) provocando escaramuças com os arrumadores e pondo fim aos espectáculos.
Por cá, não falta quem fale no restaurante com o smartphone em alta voz, ou difunda o chinfrim do Tiktok, ou restolhe pipocas no cinema – porque também paga bilhete. Não ter vergonha de assumir figuras tristes é o novo “Yes!” do reality-show urbano. É o Yes I Can vindo do bueiro, validado por cavernícolas que vão reeducando as massas na sua metódica ascensão ao poder.
Contudo, o maior perigo vem da horda calada que rumina rancor e tédio, gente que não sabe o que fazer com a liberdade e descobre no teclado uma extensão do joy-stick e nas redes sociais o êxtase do perfil falso. Chamam-lhes “trolls”, termo também carecido de boa tradução. Alguns são recrutados pela engenharia do caos, mas o resto só aspira a viralizar o fel que despeja nas redes e nas caixas de comentários para atenuar um mal-estar interior que é manipulável e, porventura, epidémico. Esse fel faz do velho “fora o árbitro” uma joia decente de protesto e do saudoso Vidal Pinheiro um pátio de malcriadez honrada.
Ao empoderar-se, o “Troll” relegou o “heckler” para a segunda divisão e não se pode erradicá-lo porque tem direitos. O árbitro do jogo foi metido na jarra pelo encolher de ombros relativista da maioria, para quem está tudo bem assim ou assado.