FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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Há outra expectativa quando a época se inicia com um novo treinador. São novos métodos, ideias, saber como irá gerir o balneário, se vai mudar o chip de gente que não atingiu o nível que se esperava, se a equipa se exprimirá com disciplina e rigor sem perder a alegria de jogo, isto é, transpor o recreio para arena da competição e, cereja no topo do bolo, conseguir ganhar.
Hoje, o método faca-nos-dentes já não colhe. O jogador tem agentes, consultores de imagem, a masculinidade tóxica vende mal no Instagram
No remoto ano de 1977, participando num torneio militar no campo de treinos secundário das Antas, dei por mim mais interessado nas movimentações que o FCP ensaiava no campo de treinos principal. Às tantas, Ademir, herói do ano seguinte, fez uns passos sambados à frente do Lima Pereira, que pegou nele num abraço colérico e lançou-o ao chão como se fosse um boneco. O brasileiro queixou-se ao míster, que, ao longe, qual esfinge de boné, virou as costas e olhou para o céu de Contumil.
Aquela cena abalou a ideia ingénua que eu tinha do treino. Num podcast recente, Patrice Evra revelou que Alex Ferguson estaria na cadeia pelos padrões actuais. Além de disparar chuteiras, Sir Alex promovia o bullying no seio do plantel. Pouco depois de Ronaldo ter perdido o pai, o adjunto Queiroz marcou uma falta a seu favor numa peladinha e Van Nistelrooy perguntou acintosamente se Queiroz passara a ser o novo paizinho. Ronaldo atirou-se ao holandês e Ferguson deu a sessão por encerrada, impávido e sereno. Para Evra, era mais fácil jogar contra o United do que treinar no United. Açulada até ao limite, a rivalidade interna acumulava tensões que explodiam sobre o adversário durante os jogos, criando laços de camaradagem que voltavam à estaca zero na semana seguinte.
Noutro episódio, Nani sofreu uma entrada dura em Liverpool e Scholes, ao baixar-se para confortá-lo, deu-lhe um raspanete por estar em lágrimas. No balneário, Ferguson rugiu de raiva e disse-lhe que devia ter partido a perna, pois ninguém do United chora em campo, muito menos em Anfield Road. A foto de Nani em lágrimas encabeça ainda o grupo de What’s Up de antigos jogadores do Man United. Palavra de Evra.
Foi esta mentalidade que o FCP de Mourinho vergou em 2003. Hoje, o método faca-nos-dentes já não colhe. O jogador tem agentes, consultores de imagem, a masculinidade tóxica vende mal no Instagram. Conceição não espevitou Leão nem Félix com estadias punitivas no banco do Milão. Consta que Amorim quebrou um televisor em Old Trafford, em vão. Já o sobrolho franzido de Ancelotti fez em Madrid uma equipa de aristocratas e legionários, apesar da farda branca (agora a cargo da casa Louis Vuitton) conter já a essência de uma tropa de elite.
As novas psicologias motivacionais apontam para o cultivo da responsabilidade e não do berro, mas, no fundo, tudo se resume à reciclagem da ronha do futebol, porque o ego do futebolista será sempre a plasticina do treinador. Nunca saberemos se o destempero de Lima Pereira contribuiu para o revoltado pontapé de Ademir que valeu um título que fugia há 19 anos. Só sabemos que a História passou por ali e que Pedroto era o timoneiro.