FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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Pouco mais de quarenta horas foi o tempo que levou da alegria do início de época ao luto no FCP e na cidade. O tempo entre a promessa do recomeço e o peso da perda. A morte não dá explicações, é um lembrete da fragilidade humana a que nem o futebol escapa, malgrado o seu poder. Neste caso, parece até que o seu espectro se compraz em rondas o Dragão com sinistra assiduidade, mas é só uma coincidência, pois ela bate à porta de todos por igual e, na sua avareza, não faz descontos a ninguém.
Jorge Costa pertence a um tempo irrepetível do futebol e uma cepa que secou: a cepa dos que ficam por causa de valores antiquados, a camisola, o clube, os lugares
Alguns, como eu, com o avançar da idade, fazem cálculos antecipando a despedida de ídolos colocados em altares íntimos, aqueles com quem travamos diálogos ao longo da vida e que nos aliviaram, com uma canção, um livro, um filme as mágoas que julgávamos únicas na adolescência ou nas confusões graúdas. São estratégias mentais, inconscientes, para evitar o estalo da notícia no rodapé do telejornal, mas condenadas à inutilidade.
A morte faz parte das leis da natureza e implica um tráfego de quedas e ascensões, uma tabela de partidas e chegadas, mas uma coisa é o desaparecimento de Pinto da Costa – que integra a ordem natural das coisas – e outra é o desaparecimento do recente director Jorge Costa, para não falar de Diogo Jota e André Silva, obscenamente chamados à escala de partidas, todos roubados à vida por esticão, puros atentados à ordem natural.
Na memória, consigo recuar ao jogador rodando no Marítimo, antes de voltar ao FCP e completar o arco entre o Campo da Ervilha e o estádio de Gelsenkirchen. A História regista-o como o último capitão fora das cinco ligas ricas a erguer uma taça dos Campeões Europeus. E, pelo andar da carruagem, continuará a ser por muito tempo. Antes dele, só Danny Blind, do Ajax, em 1995. É a odisseia de um nativo da cidade e da força que brota dela em certas colheitas, maturadas, talvez, pela densidade dos nevoeiros e pelo sopro das nortadas.
Aquando da campanha que desembocaria na final de Sevilha, depois da jurada reviravolta em Atenas contra o Panathinaikos, fui um dos que ousou acreditar que aquela equipa do FCP estava destinada a aterrar em algo de grandioso, tal a determinação com que influenciava as correntes a seu favor.
Tive a mesma sensação no ano seguinte, depois do golo de Costinha em Old Trafford. Não me lembro de época com tanta fé instalada no arraial portista. Esse ciclo lançou um adepto cuidadoso como eu – São Tomé que só crê depois do fim do jogo – para um optimismo sem paralelo, uma naturalidade ganhadora que roçava já os píncaros da soberba, como se daí em diante o futuro fosse um caudal inesgotável de talento e querer.
Estava enganado. Talento, continuou a haver algum, mas o querer de Jorge Costa não teve continuação. Líderes deste quilate são raros, e hoje, se despontam, vão logo a leilão porque a indústria assim o dita. O Jorge pertence a um tempo irrepetível do futebol e a uma cepa que secou: a cepa dos que ficam por causa de valores antiquados, a camisola, o clube, os lugares.
Quase me atreveria a chamar-lhe o Último dos Moicanos.