VISTO DO SOFÁ - Uma opinião de Álvaro Magalhães
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Os clubes da liga inglesa voltarão a ter adeptos em pé em zonas definidas dos estádios, a partir de Janeiro. E isso, não parecendo, é um acontecimento com significado, pois corresponde a um passo atrás no esforço insano que a indústria do futebol tem feito para converter adeptos vibrantes em espectadores inócuos, desses que não perturbam a ordem onde o negócio cresce.
Se apreciássemos o futebol racionalmente, como qualquer outro espectáculo, a maioria dos estádios estariam vazios
Os estádios da modernidade, com algumas raras excepções, como a do Borussia de Dortmund, com a sua portentosa Muralha Amarela, não acolhem adeptos amontoados, ligados uns aos outros e ao jogo, que participam no acontecimento. O novo futebol trata de os «pôr no seu lugar» exclusivo e confortável, exigindo-lhes, em troca, o mesmo comportamento civilizado que têm no teatro ou no cinema. Querem que os estádios deixem de ser o que sempre foram, isto é, lugares perigosos onde reinam instintos primários, e passem a ser lugares aprazíveis e seguros onde se pode passar um bom bocado com a família, como numa ida ao Parque da Cidade.
Bem vistas as coisas, trata-se de reprimir o sentimento avassalador do adepto. E adepto sentado no seu lugar marcado é adepto controlado (bem educado, quieto, calado). Conferimos o anacronismo desta ordem forçada quando há alguém que cede a um impulso irreprimível e se levanta da cadeira, reagindo a uma jogada de perigo, o que gera uma onda de levantamentos. Quem não o fizer terá de ver a jogada mais tarde, em casa, na televisão. E isto repete-se vezes sem fim durante um jogo palpitante. Mais: este regime, além de aquietar o tumulto interior dos adeptos, também os isola, evitando a conjunção de críticos, como acontecia no famoso «Tribunal» do Estádio das Antas, que «julgava» até os da sua própria equipa.
São, pois, muito bem-vindos esses espaços em que o adepto recupera liberdade, capacidade de expressão e, sobretudo, identidade. Aí, os adeptos podem ser quem são: gente que vai ao estádio, que é como um seu outro coração, batendo, não para assistir a um espectáculo, confortavelmente instalada, mas para participar, fazer parte de um jogo. Se apreciássemos o futebol racionalmente, como qualquer outro espectáculo, a maioria dos estádios estariam vazios. E mesmo cheios seriam tristes receptáculos de gente inerte, sem vida.
Nem tudo é, pois, progresso demolidor, também há, aqui e ali, um passo atrás, que recupera as coisas boas ou apenas as coisas mais bem feitas do passado. A transferência de David Carmo, em que FC Porto e Braga negociaram directamente, sem intermediários, foi outro exemplo disso. Trouxe-nos à memória o tempo mais respirável em que ainda não tinham sido inventados os Jorge Mendes desta vida. E expôs mais este absurdo do futebol-negócio: se uma transferência se pode resolver com um telefonema ou um jantar, para quê pagar a um agente uma comissão que pode chegar a 50%? Sim, eu escrevi 50%, o que acontece quando certas transações ultrapassam certos valores. Não admira que, como disse Aurélio Pereira, os miúdos da formação que querem ser Cristianos Ronaldos já tragam um Jorge Mendes acoplado (normalmente, é o pai).