Opinião de Álvaro Magalhães
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Na hora da sua morte, Jorge Costa, o eterno capitão portista, foi ampla e justamente elogiado. E a maioria desses elogios resgatava a alcunha que sempre o acompanhou e era definidora da sua extrema bravura: o Bicho. “Obrigado, Bicho!”, disseram de Braga, onde ele treinou. “Bicho eterno”, escreveram numa tarja os Super-Dragões, “Meu querido Bicho”, disse Luís Figo. O Bicho para cá, o Bicho para lá, até nos comunicados oficiais. A alcunha falou mais alto, na sua estranha condição de elogio.
Pois bem, só no futebol isso pode acontecer, na vida comum corresponderia a um insulto, a um rebaixamento. E o mesmo acontece com a designação de “animal”. Não há maior elogio no futebol. Cristiano Ronaldo é um animal (Luís Figo). Em competição sou um animal (Sá Pinto). Só quero jogadores a trabalhar como animais (Xavi, depois de substituir João Félix, no Barcelona). Repito: só no futebol “bicho” e “animal” apontam para uma condição superior. Porquê? Porque o futebol põe em acção os mecanismos da nossa naturalidade, ou seja, da nossa animalidade; e reanima essa parte de nós, que a civilização e a cultura não param de soterrar.
Força, velocidade, resistência, mas também astúcia, manha, argúcia, esses atributos que qualquer futebolista persegue, encontram-se abundantemente no mundo animal. Daí o mimetismo. Eusébio era a pantera negra, o argentino Kempes uma gazela, Ardiles era uma formiga. O turco Hakan Sukur era um touro, o ondulante romeno Ilie era o “Cobra Ilie”. Por sua vez, o argentino Morete era um puma, o inglês Jackie Charlton uma girafa, Messi é a pulga e o avançado espanhol Butragueño, que aproveitava todos os deslizes adversários, era “o abutre”. Ah, e houve ainda o avançado brasileiro Edmundo, que, era, literalmente, o Animal.
Sempre assim foi; e ainda é. Se olharmos, por exemplo, para o actual Brasileirão, encontramos um Ganso, um Rato, um Jacaré, um Minhoca, um Aranha, um Mosquito, um Urso, um Falcão e um Sucuri, entre outros que tais. Olhamos para os jogadores e vemos neles deuses, heróis, artífices, operários, mas nunca nos ocorre que eles sejam exactamente aquilo que nos parece que são: animais humanos, para usar a feliz designação de Desmond Morris. Como os animais, eles correm, saltam, carregam, cercam a presa, estabelecem um território, e também como eles atacam e defendem, matam ou morrem (simbolicamente, é claro). E fungam, resfolegam, revolvem a relva em loucas cavalgadas. O uruguaio Luis Suárez, por exemplo, leva a designação de animal tão à letra que morde os adversários. Fez isso em três diferentes ocasiões. As equipas dele deviam mostrar um daqueles avisos preventivos: “Cuidado, o Suárez morde!”
Animando a nossa naturalidade, o futebol satisfaz a nossa necessidade de vida instintiva e ergue um elo poderoso entre o homem e a Natureza. Ele é a própria Natureza em acção: ar livre, um campo relvado, jogadores feitos bichos e animais, pessoas em volta, fora de si, também elas exercendo a sua irracionalidade. E o que é a Natureza senão o homem sem a defesa da racionalidade.