VISTO DO SOFÁ - Uma opinião de Álvaro Magalhães
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O futebol é a actividade humana que gera mais especialistas e também a que mais incita à conversa. Há uns poucos que o jogam, os outros, que são milhões, só o podem falar. Sem essa conversa, o que seria, por exemplo, das barbearias? E é também esse género de conversa que soa nos inúmeros programas televisivos de análise futebolística. Nos últimos tempos, multiplicaram-se e alastraram, como uma praga. Nunca tantos falaram tanto e disseram tão pouco.
Com algumas muito raras excepções, a programação televisiva massiva é uma portentosa máquina de produzir paleio inócuo e comum
Neste defeso, essa conversa fiada chamou um figo à novela Gyokeres. A informação durava uns poucos segundos: o Arsenal oferece 65 milhões, mais variáveis, mas ainda é pouco. A conversa à volta da notícia durava horas e horas, as que fossem precisas para encher o chouriço televisivo. Por isso chamam “novelas” a estas transferências demoradas: a acção não sai do sítio, nem que lhe batam. E quando não havia Gyokeres havia João Félix. Horas e horas de análise e especulação para deitar fora, pois o herói da novela, no final, trocou o amor (ao Benfica) pelos milhões da Arábia. Seja como for, um prémio qualquer (“Língua de Ouro”, por exemplo) para toda aquela gente que conseguiu o prodígio de discorrer durante horas e horas, dias e dias seguidos, sobre estes dois assuntos. Alguns chegaram a entusiasmar-se, ou a irritar-se, enquanto não diziam nada; e quase todos exibiam um ar de sabedoria infinita, o que também os torna arrogantes. Quando Villas-Boas disse que o clube ia fazer o maior mercado de sempre foi criticado por quase todos os comentadores: que devia estar calado e não criar expectativas, etc. Ou seja, os que têm realmente algo a dizer não o podem fazer. Já eles, podem perorar o tempo que for preciso sobre coisa nenhuma. Antes da Supertaça, discutia-se no canal Now, um pilar da conversa de barbeiro, se o furo do pneu do autocarro do Sporting teria impacto no jogo. Para eles, tudo tem que se lhe diga. E por quê? Porque se consideram especialistas. Ora, disse Fernando Pessoa: “Um especialista é alguém que sabe qualquer coisa de uma coisa e nada de todas as coisas. (...) É alguém que tem a opinião dos outros, embora sobre um só assunto; e é útil apenas quando a sua especialidade é tão restrita que não tem importância”. Ou seja, o especialista - digo eu - é alguém que não sabe nada e vive dessa ciência.
Paleio, lábia, mais paleio. Nem nas transmissões dos jogos nos livramos dos fala-barato. Os comentadores de serviço também falam sem parar. Pensam que é isso que se espera deles; e são sempre dois, para que não haja sequer um segundo de silêncio. A bola sai pela linha de fundo e eles dizem que a bola saiu pela linha de fundo.
E isso é o menos. Também despejam opiniões inoportunas, dados estatísticos, etc. A bola a rondar a baliza do adversário, ou a da nossa equipa, o que, em ambos os casos, nos põe os cabelos em pé, e eles a perorarem sem descanso sobre não sei quê. Ruído. Puro ruído. Com algumas muito raras excepções, essa programação televisiva massiva é uma portentosa maquina de produzir paleio inócuo, padronizado e comum. É a Era do Paleiolítico.