VISTO DO SOFÁ - Um artigo de opinião de Álvaro Magalhães.
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Na adolescência, quando descrevia o enredo de um filme às minha primas, elas interrompiam-me e perguntavam a única coisa que lhes interessava: «Tem boca com boca?».
Naquela altura, filme sem boca com boca não era filme. Pois bem, o Mundial feminino também não seria a mesma coisa sem aquele boca com boca de Rubiales a Jenni Hermoso, que incendiou a pradaria. Dir-se-ia até que, dada a dimensão da polémica, esse beijo foi o momento alto do filme, perdão, do Mundial.
Vamos ao assunto. Nas redes sociais, e não só, muitos compararam este beijo aos que os jogadores trocam, em plena imersão no jogo. É verdade que o célebre beijo na boca de Maradona e Caniggia, por exemplo, poderia figurar no cartaz de um filme romântico, mas esses beijos não são comparáveis com o de Rubiales, pois ocorreram no âmbito privado e especial do jogo, que é um mundo próprio, elementar e menor. Os que estão imersos nele, jogadores e adeptos (sim, adeptos também se beijam e abraçam em momentos de grande tensão, por vezes, no primeiro encontro), estão possuídos por uma espécie de inocência primordial a que podemos chamar estado de infância. Beijos e abraços, mas também palmadas no rabo e outras intimidades, se forem feitas no âmbito do futebol jogado, são gestos inocentes, extirpados de qualquer malícia. Por isso, os jogadores (e adeptos, como disse) o fazem tantas vezes, sem constrangimentos, ou seja, naturalmente, perante milhões. Mas nunca esses mesmos jogadores repetiram o beijo fora do âmbito especial do futebol. O que - aí, sim - seria escandaloso.
Porém, esta imunidade que o futebol concede não se aplica a alguém que irrompe do exterior, como foi o caso de Rubiales. Por isso, aquele beijo impetuoso não está a ser visto e julgado pelas «leis» do futebol, mas pelas da vida comum e do tempo que corre. Não admira que alguns e algumas, de sectores mais radicais, lhe chamassem agressão sexual.
E houve vítima ofendida e afectada ou os mais ofendidos são os que apenas assistiram ao beijo pela televisão? A avaliar pelo vídeo que mostra a equipa no autocarro, depois do jogo, a vítima ultrajada não estava ali. Jenni brincou com o incidente e até o comparou, alegre e impropriamente, com o beijo de Casillas a Sara Carbonero, que foi um beijo amoroso.
Claro que esta inexistência de vítima não serve para inocentar o gesto de Rubiales, que também tem contra ele o apego ao poder e a pose machista, perfeitamente desenhada pela grosseria do toque nos genitais durante o jogo, mas ajuda a desagravá-lo. Aliás, aquele beijo, no âmbito desportivo, quando muito justificaria uma multa e uma suspensão temporária, como aconteceu a jogadores que, em pleno jogo, exibiram os genitais, por exemplo. E o T.A.D. acaba de o confirmar, considerando que, afinal, a infracção não é tão grave como a têm pintado por aí. Queimar o homem numa vistosa fogueira, como está a acontecer, é obra do feminismo mais encarniçado e da sua implacável polícia de costumes. A partir do momento em que beijou a jogadora, Rubiales passou a ser um homem morto.