FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
Corpo do artigo
O senhor Abílio (nome fictício) é um benfiquista com quem troco uns cromos sobre bola. Encontro-o na rua, lá se ganhou, lá se empatou, como quem fala das poeiras do Saara ou da falta de chuva.
Da última vez, solidarizei-me pela derrota contra o Liverpool, por conhecer bem esse veneno, mas ele pensou que eu estava a ser irónico e respondeu que afinal havia um modo de perder por poucos com os ingleses. Lembrei-lhe a exibição do Vlachodimos, ele rogou uma praga ao Luís Diaz e admitiu que odiava derrotas honrosas.
Mas havia na sua voz uma sombra que ia além do histórico recente das águias, a queda de Vieira, as escutas, a saída atribulada de Jesus, a novela em torno de Pizzi, o amuo do Rafa, a imagem viral de André Almeida correndo menos do que Soares Dias, as queixas das arbitragens, a opção Veríssimo, o incompreensível anúncio dum novo treinador com a equipa ainda disputando o segundo lugar do campeonato e a Champions, as próprias dúvidas sobre a capacidade de Rui Costa levar a nau a bom porto.
Pois bem, acima de tudo isso, havia a tal sombra extra anuviando o benfiquismo do senhor Abílio, e que só o pudor impedia de verbalizar, sobretudo perante um portista.
Até que pigarreou, deu ares de grande segredo, e desembuchou: o negócio entre John Textor e o Rei dos Frangos não ia em frente. Se, por um lado, sentia um enorme alívio por ver afastada a infame possibilidade dum investidor americano entrar para a SAD, por outro, incomodava-o que o epíteto Rei dos Frangos continuasse a aparecer associado ao Benfica.
Incomodá-lo-ia menos se fosse o Imperador dos Faisões ou o Czar das Perdizes a deter tantas acções e a ter direito a nomear um administrador. Porque ia dar tudo ao mesmo, eram jogadas de poder, manigâncias do capital, mas Rei dos Frangos não tinha perdão, significava ver o Benfica conspurcado em público por um sound byte popularucho a pingar gordura e molho picante.
E a culpa era da Imprensa que, só para achincalhar, abocanhava o apelido como um cão que não larga o osso, quando podia e devia tratar o Rei do Frangos pelo seu nome de sócio: José António dos Santos.
Concordei que se tratava dum significante ao nível do Califa das Bifanas e, por arrastamento, reflecti sobre o desmesurado afecto que a maioria de nós, adeptos, tem pelos seus clubes, ao ponto de projectarmos neles ideais cívicos e fantasias de perfeição.
O conceito que o senhor Abílio tem da marca Benfica não se compadece com ligações ao Rei dos Frangos, e isso, mais do que uma questão de decoro, tornou-se uma espécie de problema estético. Que lhe podia dizer? Que também eu, numa dissidência da Revigrés, também sentiria desconforto com um Barão das Tijoleiras surgindo na Imprensa associado ao FCP? Que as Sads não escolhem accionistas porque o mercado é cego? Que a indústria da bola é uma teia de oportunidades de negócio, mas que o futebol será sempre melhor?
Não disse nada. Seria demais para uma conversa de rua. Além disso, a manhã estava gélida e a chuva, por fim, dava sinal de si.