FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Sérgio Conceição foi brindado com uma carta aberta de Rui Santos na CNN, numa rubrica que o alteia com tacões de referência plumitiva e o consagra como uma espécie de guardião moral do nosso futebol.
Aconteceu no rescaldo da vigésima segunda expulsão de Sérgio - a décima segunda no FCP - após bocas a um árbitro que expulsou dois jogadores na Madeira, um de cada lado, por inépcia e abuso de poder.
A carta, proferida no tom do educador paternalista e usando o "tu" de oficiais do mesmo ramo mas de graduação superior, esclarecia que o medo de punir é o pecado original do futebol português, medo que permite a Conceição reincidir na má conduta, pois na UEFA a música é outra - lá não canta o galo da paródia, mas do respeito.
Conceição ferve em pouca água e é punido de acordo com o regime penal vigente, mas Santos sugeria nas entrelinhas um correctivo mais dissuasório, quiçá aplicável a Mourinho, dado o seu rol de expulsões, ou a Jesus e Abel, este expulso seis vezes em dois anos de Brasil. Ou a Tuchel e Conte, apartados à justa do confronto físico pelos seus adjuntos em Stamford Bridge, depois de Klopp e Arteta terem feito o mesmo em Liverpool.
Isto remete para um mito do nosso futebol: a ideia dum lamaçal à beira mar plantado, de preferência a norte, onde o molho é mais mediático, daí o anseio dum futebol enquanto ilha de pureza e honradez num país em que educados artistas da alta roda são tratados com pinças pela justiça - por muito dano que causem. Como se caiba à malta da bola ensinar à sociedade a arte do chá e não o contrário.
A percepção dum futebol mais tóxico parece aumentar com as personagens que crescem fora do campo: clérigos televisivos, grilos do twitter, peritos em ignições. Enquanto uns esgalham newsletters e trocam de cor, de bar, de isqueiro, as SAD cuidam do negócio e deixam a conta aos adeptos e aos treinadores. Pelo meio, os clérigos agitam um missal ético há muito lançado às malvas, não por baixeza intrínseca do futebol, como dizem os detractores, mas porque os resultados passaram a ser casos de vida ou de morte entre empresas concorrentes numa indústria de milhões, além de acaloradas questões entre clubes.
Neste caldo, é útil relembrar aos treinadores que o jogo não é uma guerra, mas exigir-lhes que sejam imaculados, que não pressionem, não usem manhas, é uma cantilena repetida pelo clérigo independente e corajoso pugnando pela inefável verdade desportiva - que ninguém cala. Ao pé disto, as picardias dos treinadores são provocações honestas.
Os treinadores vivem com o cutelo no pescoço, como sempre viveram. Quando perdem as estribeiras, devem ter desconto e remissão. Vistam a camisola que vestirem, estarei com Jesus, Conceição, Amorim, Vidigal. Mandem-nos para Gulags de reabilitação, obriguem-nos a frequentar cursos de mindfulness e controle da ira, mas no dia em que fizeram deles esfinges no banco encomendem um requiem pelo futebol.
Os clérigos, esses, podem engarrafá-los e vendê-los em Fátima, ao lado dos frasquinhos de água benta.