VELUDO AZUL - Um artigo de opinião de Miguel Guedes.
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Enfrentar regimes instituídos não é para todos, mas só um retira os sorrisos da cara. Um deles, o regime de Teerão, fez com que Mehdi Taremi não sorrisse uma única vez durante o jogo com o Braga.
Não houve um golo que lhe fizesse descerrar o rosto, uma assistência que exteriorizasse emoção ou um passe açucarado a colocar-lhe brilho nos olhos.
O iraniano foi, durante o jogo, um filho do seu país. Depois de mais uma exibição monumental, decisivo nos três primeiros golos, explicou que não celebrara pela infelicidade da "situação que se vive no Irão". Ele que, em várias manifestações públicas, criticou o regime de Teerão pela forma como coarta e pune a liberdade das mulheres em usar (ou não) "hijab", se colocou - à semelhança dos colegas de selecção - corajosamente ao lado da defesa dos direitos humanos e das mulheres iranianas, em particular. Ao afirmar que "há que ter respeito pelas nossas pessoas", marcou, em nome próprio de jogador e Homem, o golo que não conseguira durante o jogo.
Uma luta que tomou proporções planetárias. A morte de Mahsa Amini, mulher de 22 anos, pelo uso incorrecto do véu islâmico, ainda gera ondas de convulsão e abriu novos capítulos na luta pela liberdade no Irão, erguendo-a como um símbolo e mártir. Uma revolução liderada pelas mulheres, o elo supostamente mais débil de um regime que continua a tratar seres humanos de forma diferente e com direitos distintos, em razão do género. Mas se do teclado é fácil falar e se do exterior é fácil lutar, já internamente não é assim. Para os símbolos do país, a comodidade servir-se-ia pela dieta do silêncio. Mehdi Taremi, como poucos outros, correndo riscos que não se conseguem sequer antecipar, levantou a voz em nome das mulheres que neste momento estão na rua, retirando o "hijab" como outrora se queimaram "soutiens", soltando os cabelos. Que orgulho para os portistas, ter um jogador e um ser humano de excepção a jogar no FC Porto.
A luta contra o outro regime, o que ultrapassa a salutar picardia dos adeptos de futebol, o regime da insídia que monta campanhas com ataques permanentes e sistemáticos ao carácter de um jogador, em nome de uma verdade desportiva subitamente na língua mas que nunca praticaram ou cuja falta nunca os incomodou outrora, imaginária, não retira sorrisos a Taremi. Ainda no jogo desta semana, ao quererem transformar um lance de expulsão indiscutível (que nem Matheus contestou) numa simulação que daria imenso jeito à narrativa. Perante isto, acredito que Taremi sorri. Taremi, o melhor em campo e o melhor de nós fora dele.