FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Dá que pensar ver um clube com galões no nosso futebol, como a Académica, baixar à terceira liga, tendo em conta que foi apenas há dez anos que conquistou a sua segunda Taça de Portugal - além de lhe caber a honra de ter vencido a edição inaugural do troféu, em 1939.Aliás, em número de taças, a Briosa aparece atrás de Braga, Setúbal, Belenenses, com três, e do Boavista, com cinco.
Além disso, é herdeira duma figura sem par no futebol, o jogador estudante. Há dois anos, aquando da morte de Vítor Campos, que ainda vi jogar, não lhe associei um atributo específico porque o que prevalecia na memória era o todo, a mística dos irmãos Campos, de Gervásio, Rocha, Belo, Vieira Nunes, Toni.
Além de arrastarem uma claque ruidosa, arrastavam um equipamento preto, de turba doutoral em marcha, mais ameaçador na rádio do que no campo, já que aí era idêntico ao do Tirsense e Sanjoanense, nesse tempo também disputando a primeira divisão. Esse tempo remete para a puberdade do próprio futebol, quando o relato tinha um fascínio de autor, antes de a televisão ter levado a rádio na enxurrada da imagem.
A Académica regista também o mais ousado - e único - desafio ao Estado Novo protagonizado por um clube português, ao entrar a passo no Estádio do Jamor de capa aberta e caída, em sinal de luto académico, para jogar uma final de taça com o Benfica, em 1969. Uma atitude, um recado, um clube.
Mas o que é hoje um clube? Um vínculo a um lugar? Uma marca comercial? Um interveniente numa indústria? Em Inglaterra, berço do futebol, o clube, enquanto expressão da comunidade, era (e ainda é) detido por um dono, um magnata que marcava posição social pela construção duma equipa.
Devido ao forte sentido regionalista e à distribuição demográfica do país, o jogo tornou-se um factor identitário e um negócio que o equilíbrio competitivo catapultou cada vez mais. A globalização atraiu capital árabe, americano, tailandês, mas o adepto manteve sempre o lugar central. Ou seja, o dono pode comprar e vender o clube, mas a sua alma pertence ao adepto.
Por cá, as SAD abalaram o remanso associativo dos clubes, que tentam permanecer na elite arrendando o nome e a licença a sociedades que prometem investir e fazer gestão empresarial. Se houver adeptos, tanto melhor, animam a bancada, compram cachecóis, mas o negócio principal é a televisão, os patrocínios, a venda de jogadores para ligas abastadas. Uma Remax da bola.
A questão é saber quanto tempo se aguentam as pequenas SAD sem adeptos vibrando por trás. A julgar pela B-Sad, pouco. Se uma cidade como Coimbra nem na segunda liga consegue fixar o seu emblema, significa que o tempo do adepto bem intencionado cumprindo funções directivas chegou ao fim.
Talvez tenha sido o passado ilustre da Académica, com o fantasma do jogador estudante à cabeça, a sabotar a sua adaptação a esta complexa economia desportiva. E a queda, que espero reversível, é o requiem por um futebol apanhado nas malhas dum diabo que, além de vestir Prada, não tolera carolice.