FOLHA SECA- Opinião de Carlos Tê
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Um dia, ao passar os olhos por um sonolento Belenenses-Marítimo, dei-me conta de que alguma coisa não batia certo, e não era o desolado e triste estádio do Jamor, nem a extravagante nomenclatura B-SAD, uma dissidência neopentecostal dum histórico clube português. Era o som da emissão, sem uma única voz masculina no painel.
A Sport TV tinha destacado um trio feminino para um jogo de primeira liga: narradora, comentadora, repórter de campo. Pareceu-me que todas desempenhavam bem a tarefa mas, ainda assim, a sensação de anomalia em curso não me largou. E, no entanto, aquelas profissionais seguiam o cânone em vigor, com realce para a pivô, subindo o arco vocal da emoção no momento do golo, como faziam os relatadores da rádio nas idas tardes de domingo.
Vim a descobrir que tinha sido vítima de uma inconsciente e pidesca tentação de catar erros básicos, desses que as parceiras cometem em casa quando se dignam lançar, por solidariedade com os parceiros, uma olhada a um aborrecido jogo na televisão.
Mais ou menos por esse tempo, tropecei na notícia dum Tottenham-Manchester United, retransmitido para o Irão, e censurado no seu decurso por mostrar as pernas da juíza auxiliar que corria na linha lateral com a bandeirinha na mão. Quando a focavam, a operadora estatal iraniana inseria imagens das redondezas do estádio. No fim, o locutor deu-se ao gracejo - esperava que os telespectadores tivessem apreciado a geografia das ruas londrinas à volta do recinto. É sabido que no Irão as televisões não mostram joelhos nus nem cabeças descobertas de mulheres - talvez para evitar o desassossego do profeta que tudo vê com o seu olho casto - por isso se tapam na rua com o hijab.
Por cá, estamos livres da ameaça duma fêmea em calções, mas às vezes ainda se ouvem reparos quando se acercam duma bola. Foi o que aconteceu num semanário de Lisboa, a propósito do Europeu que agora termina, com um escriba taxando o futebol feminino de mistificação e de cedência à ideologia de género, ainda que algumas jogadoras tenham revelado uma fina técnica individual, sobretudo as espanholas. Antes, um zeloso oficial do ramo já tinha pedido a devolução do futebol aos homens - prestes a ser usurpado - por causa duma comentadora que criticara uma táctica ou alguém num programa televisivo.
Talvez os parentes do futebol não caiam na lama com a chegada de jogadoras, treinadoras, comentadoras. Diria até que peca por tardia, pois pode amenizar a tensão negativa que, não raro, o intoxica. Além disso, o futebol não é masculino nem feminino, mas de quem gosta de o ver e de o jogar, sem cotas, sem empoderamento especial, apenas como mais uma manifestação desportiva. Lembra-me a velha questão de saber se há uma literatura feminina e uma masculina. Remeta-se o caso ao público e ele que decida. Basta abrir uma cerveja e ver hoje a final Inglaterra-Alemanha. É certo que, por ditames da biologia, haverá menos velocidade, mas o guião será o mesmo num Wembley tão repleto como na final masculina do ano passado.