FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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No fim do jogo contra o Brugge, um amigo benfiquista mandou-me uma mensagem misteriosa ao sair do estádio: "a tareia estroboscópica não me deixou saborear a goleada". Fiquei a saber que o Benfica tinha planeado uma festa antes do embate para a Champions com um conceito inovador e único em Portugal. Para isso, convidou o DJ Kamala a recuperar antigos cânticos dos adeptos e a adaptá-los ao programa "Estádio em dia de jogo, pré-game shows, vídeo, luzes", num espectáculo alavancado por um demolidor tijolo de som em sensurround.
A exemplo de Itália e Alemanha (não em Inglaterra), já temos animadores de público que soam como feirantes, mas o Benfica deu o passo em frente
A exemplo de Itália e Alemanha (não em Inglaterra), já temos animadores de público que soam como feirantes, mas o Benfica deu o passo em frente e avançou para a animação total. O conceito decorre duma ideia que vai vingando: redesenhar o futebol e colocá-lo na faixa do entretenimento multidisciplinar, oferecer ao adepto mais do que um jogo de futebol, fazer da ida ao estádio uma experiência imersiva de contornos psicadélicos.
Nada contra, embora me solidarize com quem dispensa foguetório hi-tech e só quer ir à bola. O mundo é composto por mudança, dizia Camões, e a tecnologia tem introduzido pequenas e grandes mudanças, pequenos e grandes êxtases a cargo de mestres de cerimónias e prestidigitadores emergentes. Já me aconteceu estar num concerto e alguém na fila da frente começar uma live streaming para os seus seguidores; tudo porque tinha pagado o bilhete e estava no direito de exercer a sua vocação de influencer e comentar o instante em directo. Alguns destes novos libertários instalam potentes sistemas Hi-fi nos carros para exibir a quem passa o seu gosto musical. O que era só parolice passou a ser afirmação de liberdade e gosto. Há quem se indigne e defenda a pacatez das ruas, das praias, das bancadas, e há quem, preso ao passado, se queixe do progresso. Situo-me no primeiro grupo, embora atento aos sintomas do segundo. Por exemplo: acho que o cozido à portuguesa não deve ser violentado por devaneios de alta cozinha, e que o pastel de bacalhau não deve ter queijo da serra; são fórmulas que o tempo apurou até à perfeição e é um sacrilégio incomodá-las.
Acontece que no futebol, como no cozido e no pastel de bacalhau, as regras mudam pouco para que sobressaia a qualidade dos ingredientes de cada época. Mas, para os génios do marketing, o futebol é um velhote com potencial a que uns shots de botox dariam um perfil Premium irresistível. O produto é top, mas não é sexy enough para a clientela do futuro - jovens rendidos à magia das raves e das sunset parties. Há que embrulhá-lo em celofane audiovisual, efeitos especiais, Kamalas refrescando o bruá datado e obsoleto das multidões, enfim transformar uma ida à bola num evento de múltiplas camadas, algo do tipo: "gostaste do jogo? Não, mas o DJ foi altamente."
O meu amigo, purista impenitente, decidiu que chegará aos jogos em cima da hora. O Benfica pôs queijo da serra no bolinho de bacalhau e o público gostou. Daí Amorim ter sugerido um DJ em Alvalade para ter a mesma energia da Luz.