FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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A rivalidade é o sal do futebol, diz o cliché. Sem ela, a novel indústria da bola seria tão excitante como a concorrência entre a Auchan e a Sonae nos domínios do retalho. A indignação nas hostes benfiquistas causada pelo abraço de Pinto da Costa a Rui Costa é uma dessas pedra de sal. O olho televisivo apanhou-os no papel de CEOS quando os adeptos exigiam dirigentes.
Algumas rivalidades apimentam-se por vizinhanças que partilham ofícios e perduram ainda que os clubes num certo momento estejam mais fracos. É assim no triângulo piscatório Leixões-Varzim-Rio Ave, na linha entre Paços de Ferreira e Freamunde, ou entre Braga e Guimarães. Outras assumem dimensões nacionais quase ideológicas, como Barcelona e Real Madrid, e Porto e Benfica.
Durante muito tempo, o Benfica olhou o Porto do alto dos seus títulos e das duas taças europeias. Jogadores e adeptos portuenses amochavam perante uma sobranceria de sede do reino que trazia anexado um medo cénico. Tarde ou cedo, sabia-se que uma força natural ou artificial emergiria no jogo para o desequilibrar a sul. Custava-me ver o Porto-Benfica nas Antas por causa disso. Até a mítica goleada do Lemos me pareceu um acidente miraculoso e irrepetível.
Quando a relação de forças se alterou e o Porto deu consigo como o clube mais titulado internacionalmente, um ressabiamento mal disfarçado azedou a Luz.
A rivalidade foi subindo de patamar e hoje roça a histeria beligerante em dia de jogo. Os dois últimos não desmereceram a regra. Na taça, jogando meia parte contra dez, o Benfica não aproveitou a superioridade numérica. No campeonato, o Porto teve o seu pior período a jogar contra dez. Para certos teóricos, é mais difícil jogar com um a mais porque o adversário cerra fileiras. Para outros, é uma balela.
Enquanto a bancada ensaiava uns olés broncos importados das touradas, a equipa jogava para trás e para o lado convidando o Benfica a mostrar os dentes. Conceição não gostou dessa fase, mas é nuance que o treinador não controla do banco, pois entram em jogo outras variáveis. A equipa enredou-se na teia do êxito perto de acontecer e oscilou entre a tentação recreativa dos olés e a pergunta cautelosa: quanto falta para acabar?
Por outro lado, a vantagem no marcador e nas unidades acrescentou um favoritismo incómodo, um não saber bem o que fazer com o resultado e com um jogador a mais. O golo sofrido acendeu o velho medo do rival, que traduz o respeito pela história. Estar na mó de cima e tremer é próprio das equipas em consolidação. Ou talvez sejam só aspectos culturais.
Naquela situação, Bayern e Liverpool cheirariam o sangue e, enfunados pela turba, não hesitariam em golpear um rival de joelhos. Mas o público troca a honestidade da carnificina desportiva pela fanfarronice do olé, o que diz muito sobre nós enquanto povo que, com tantos anos de liberdade como de canga salazarista, já sabe que pode ser tão bom como os melhores. Mas às vezes opta pela bazófia e escolhe ser tão mau como os piores, distraindo-se do essencial.