PLANETA DO FUTEBOL - Uma análise de Luís Freitas Lobo
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1 - O trauma ainda pode permanecer na nossa cabeça, mas na retina daquela noite de fantasmas sérvios na Luz, ficam-me as jogadas e os toques na bola de quem joga muito, mesmo que ao longo da carreira nunca o tenham reconhecido no nível internacional máximo como merecia: Dusan Tadic.
Fez a carreira desde o seu Vojvodina, pelo Groningen, Twente, Southampton e, desde há quatro épocas, no Ajax, onde é, aos 33 anos, o grande ponto de evolução da nova política do clube em juntar aos tradicionais talentos da sua formação mítica outro tipo de jogadores, compostos pela qualidade com experiência mas ainda com o estímulo competitivo certo, quase como se estivessem numa segunda vida do talento.
Tadic é o protótipo desse jogador que, em campo, suporta a nova vida europeia do atual Ajax de ten Hag e, na sua seleção, leva o jogo da Sérvia para uma dimensão de entendimento coletivo que tantas vezes não teve anteriormente e como que atraiçoou (nos resultados) o talento das individualidades. Tadic, numa quase contracorrente histórica com esse caráter balcânico mais temperamental, tem isso tudo e fala uma linguagem diferente.
2 - Como o definir posicionalmente? Um n.º 10 perdido no tempo? Um médio-ofensivo? Um segundo avançado? Um falso ala que surge em diagonais? Nenhuma delas parece completa e todas juntas parecem fazer sentido. Ou seja, a posição (lugar) de Tadic é onde a bola (e o jogo) estiver, para pegar nela (e nele), sendo, pelas faixas ou por dentro, o jogador que, em campo, só quer ser o melhor amigo de todos os outros dentro da sua equipa, tal a forma como tanto ajuda o pivô a sair a jogar, como tabela com o lateral a subir (viu-se com Zivkovic), ou como surge a dar o último passe para o ponta-de-lança. E também faz golos, claro.
3 - Se há algo que pode distinguir esta atual seleção sérvia de outras anteriores é esse espírito mais coletivo da equipa, que sempre teve talentos impressionantes mas que quase sempre se perderam em conflitos internos entre os seus egos.
Em termos de sistema, joga numa espécie de 3x5x1x1 que se estende a toda a largura (subida dos laterais, Kostic-Zivkovic) e comprimento do campo pelo jogo interior, quase fazendo uma espécie de "quadrado" a meio-campo - formado pela dupla de médios-centro, os pivôs Gudelj-Sasa Lukic, e outros dois elementos que surgem no centro, partindo de esconderijos mais abertos, Milinkovic-Savic e Tadic, o tal "1" que se solta para, vagabundo, apoiar o ponta-de-lança, que tanto pode ser o velho caminhante e possante n.º 9 tradicional de jogo aéreo (Mitrovic) ou uma nova potência de agilidade rematadora a despontar (Vlahovic).
Numa estrutura alternativa, como fez contra Portugal, pode juntar esses dois n.º 9 (de estilo/mobilidade diferente) e, retirando um médio mais recuado (no caso Gudelj), dar a Tadic e Milinkovic-Savic uma missão mais ampla no terreno para pegar no jogo em zonas mais atrasadas (passando, olhando a forma como se estende em campo, para um desenho de 3x3x1x1x2).
4 - Para além desta combinação sérvia invulgar entre individualidades-coletivo, existiu também uma demonstração de um dos maiores tesouros que uma equipa pode ter em campo: capacidade de, sem trair o seu modelo/identidade, jogar em diferentes versões ofensivas.
Isto é, tanto pode sair a jogar apoiado, combinando entre linhas por dentro em passes mais curtos, como pode esticar o jogo em largura pelas faixas e, em vez de "tricotar" tanto em posse, jogar mais no ataque à profundidade (numa definição simplista, "jogo direto") para o seu n.º 9 forte a combater e receber a bola (e rematar) mesmo sob pressão dos defesas adversários.
Na base, tem a estrutura dos três centrais que marca tendência preferencial no futebol moderno mas, neste caso sérvio, talvez pela evidente subqualidade dos componentes desse trio a sair a jogar, parece quase sempre, dessa forma, ir meter-se em problemas (entenda-se num "beco sem saída" para a transição defesa-ataque desde um posicionamento tão baixo). Assim sofreram o golo. Era, porém, muito cedo. Existia ainda todo o tempo do mundo (OK, do jogo) para surgir, por todos os lados, o imenso futebol do "baixinho gigante" Tadic.
Como jogar apoiado num relvado com tufos de relva?
A outra força das Balcãs, a Croácia, conseguiu o apuramento noutro jogo também dramático, contra a Rússia, em casa. Ganhou perto do fim (1-0) com um autogolo russo, mas dominou todo o jogo debaixo de forte chuva e vento, que tornaram o relvado quase impraticável, em terra revolta e lama. Mesmo assim, era impressionante ver como, pegando no jogo desde o meio-campo, a dupla Brozovic-Modric insistia em jogar como se estivesse num tapete de veludo com a bola no chão. E o impressionante era que, como por artes mágicas, a bola quase parecia fazer uma gincana por entre os tufos de relva levantados e chegava sempre redonda ao seu destino certo. Um intrigante caso de bom futebol apoiado (cheguei mesmo a ver Modric fazer um passe com o exterior no meio da lama!) num relvado revolto.
Ao mesmo tempo, teve, claro, também o argumento mais primário de meter um n.º 9 possante (Petkovic) para combater entre centrais adversários e ganhar bolas perto da baliza. Simplificou mais o jogo a nível do passe longo, mas Modric continuou a querer meter a bola no chão e dizer que, seja em que terreno for, jogar bem é só assim como ele faz. Sem nunca perceber o jogo, a Rússia não teve argumentos, tirando algum rasgo de Golovin (mas perdido sem ter bola) e acabou a defender atrás (num exercício de resistência) sem conseguir crescer para o contra-ataque.
Quem me fez (faz) sonhar: rei Stojkovic
Apesar de gostar muito de Tadic, não existe a mínima duvida que, nessa noite na Luz, o grande craque sérvio (ainda com a camisola da velha Jugoslávia unida) que, pensando no passado, mais me apaixonou ver jogar estava no banco. Como treinador, claro. Dragan Stojkovic, fabuloso tecnicista inventor de fintas, toques, passes e remates maravilhosos. Depois do Estrela Vermelha, espalhou essa magia no Marselha dos anos 90, até acabar no Japão. Era mais do que um n.º 10 porque fazia tudo o que os outros jogadores também faziam em campo, só que sempre melhor. Fenómeno!