FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Portugal nunca foi uma terra de fair play - Jorge Jesus chegou mesmo a dizer que não passa duma treta. Tendemos a desdenhar o mérito alheio, algo que a língua afiada do povo traduz em ditos como "cão passando em vinha vindimada".
Na derrota, há quem perca a cabeça, como Mourinho, que importunou o árbitro da final da Liga Europa na garagem do Puskás Arena. Na vitória, há quem mostre o complexo de Primus Inter Pares e exiba uma superioridade piedosa, como Rui Costa, ao dizer que o Benfica não foi campeão contra ninguém, mas respeitava todas as opiniões. É a ideia secular dum Benfica tão magnânimo que se pode dar ao luxo de pairar sobre a pequenez e a inveja, daí não precisar de estar contra ninguém, a não ser quando estala o verniz, como aconteceu ao mesmo Rui Costa quando foi confrontar o árbitro no túnel da Pedreira depois de ser eliminado da Taça de Portugal. O barro é igual para todos.
Mas o perfume da vitória pode operar milagres, como pôr Sérgio Conceição a fazer guarda de honra ao Braga no Jamor, depois do engulho em reconhecer que o Benfica foi melhor durante mais jogos. Não seria um desses pífios actos de nobreza que os beatos da bola tanto prezam, mas admitir a simples matemática da regularidade, a dose mínima de fair play que custa menos do que tomar a vacina do covid. Contudo, vivemos tempos negacionistas, por isso, há quem prefira a enfadonha casuística do azar e da sorte, ou do VAR com um cisco na lente.
Não admira que tenhamos inventado o cartão branco, uma parceria do Plano Nacional de Ética no Desporto com a Confederação das Associações de Juízes e Árbitros, e a Coca-Cola. A iniciativa é boa, mas talvez denote o incómodo pela transformação do futebol numa actividade económica que, à imagem de outras, apregoa boas práticas de concorrência enquanto sonha com super ligas e mercados sem regulação.
O país do cartão branco é o mesmo que ficou em choque ao descobrir uma academia de formação que vendia sonhos falsos a jovens do terceiro mundo e os mantinha em cativeiro enquanto não recebia as propinas. O Sindicato dos Jogadores fala dum movimento comum em Portugal, às mãos dum empreendedorismo dinâmico e incensado, capaz de encontrar uma oportunidade de negócio na sarjeta e voltar ao esclavagismo com a limpeza de quem regista o Euromilhões.
O futebol reproduz os esquemas mais opacos da sociedade porque faz parte dela, apesar de ter leis próprias. Ainda assim, é difícil dizer se era mais limpo no passado - tendo em conta a sua dimensão proporcional - ou se a sensação de ser mais sujo hoje é apenas o efeito do seu intensivo escrutínio mediático.
No futuro, será curioso ver como o consórcio da bola gerirá um negócio que vive da rivalidade e do aniquilamento real e simbólico do parceiro, com adeptos deslocando-se em caixas de segurança que lembram guetos ambulantes. Pelo meio, num jogo de juvenis da beira Baixa, um massagista borrifará um rival com spray milagroso e verá o cartão branco. E isso será tão animador como espalhar o catecismo pelo Donbass.