FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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Em tempo de Mundial, adepto que se preze puxa do Fernando Santos que tem em si e faz a convocatória e a equipa ideal. Mas, vendo bem, ser Fernando Santos é um berbicacho, mesmo bem pago.
A verdade é que Fernando Santos tem a dura tarefa de gerir a dívida com o herói e determinar o instante em que ele atrapalha mais do que ajuda.
Acusam-no de ser conservador, de mexer tarde, de favorecer os agenciados por Jorge Mendes, de olhar mais para o estatuto do que para a forma dos jogadores. Ainda assim, vai levando a água ao moinho da selecção. Às vezes mal, como quando tirou Dalot depois de marcar dois golos à Chéquia para colocar contra a Espanha um Cancelo abúlico mas intocável. Contudo, ninguém pode acusá-lo de ser pé-frio, pois ganhou as duas finais que jogou e não falhou um apuramento.
Com Scolari, em 2004, a Grécia cheirou o pavor de desapontar a pátria em casa e explorou-o como um caçador à espreita. Ganhou-se em 2016, no covil do Adamastor francês, usando a receita grega, embora Santos tivesse feito declarações de fé - que soaram a bazófia - sobre a mala feita para um mês. Aí a derrota era plausível e o título um bónus do destino. Agora, perder é um trauma e vencer uma obrigação. Duas taças e o talento que existe tornam-nos favoritos. Exige-se que joguemos como a Alemanha, mas o pedigree é curto porque se começou a ganhar tarde. Além disso, alguns jogadores julgam-se os brasileiros da Europa e não resistem a adornar os lances.
Mas será esta a melhor geração de sempre ou a que tem menos complexos e mais mundo? Teria a geração de Figo, Rui Costa, Baía menos talento, ou a organização profissional de hoje faz a diferença? O nosso futebol é outro e o país também, muito graças a Ronaldo, promotor da imagem de Portugal, recordista de tudo, até de seguidores no Instagram. É dele que se aguardam feitos já fora do seu alcance porque a biologia não perdoa. Talvez porque se preparou mal, não fez a pré-época, e corre metade do que o Luka Modric, com a mesma idade.
Contra o Uruguai, a equipa acordou quando ele saiu. Bernardo e Bruno soltaram-se para os seus melhores momentos na selecção. O jogo da Coreia revelou Ronaldo obcecado com o recorde de Eusébio, e não se coibiu de fazer uma cena à inglesa para gáudio das mil câmaras que o sugam. No fim, tentou compor a coisa, tal como o treinador, mas a verdade é que Santos tem a dura tarefa de gerir a dívida com o herói e determinar o instante em que ele atrapalha mais do que ajuda.
Não é ingratidão, é apenas a vida a mover-se. Santos tem pavimentado o caminho com ronha e paciência. Lidou como pôde com o mau timing da entrevista e afirmou a imunidade do grupo a ruídos exteriores. Após o Uruguai, pairou a sensação de que estar tudo controlado e Ronaldo aceitar ser substituído sem dramas, mas a dúvida voltou na quinta-feira. A rifa duma estrela improdutiva e caprichosa saiu na pior altura. Por coincidência ou não, o golo sofrido no último minuto - mais um - é um tratado de apatia e relaxamento. Podemos estar perto de dobrar o cabo do medo de existir, como diria José Gil, ou então o medo de perder ainda é maior do que a gana de ganhar.
Nota: o autor optou por escrever na ortografia antiga