FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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Em ano de desempate entre tempo vivido em democracia e ditadura rola um certo clima de desânimo.
Durante meio século, os menos resignados pegaram na mala de cartão e emigraram. O resto amouxou, meia dúzia resistiu.
A liberdade, inebriante e nova, trouxe a escolha de levantar, cair, estudar, não estudar, calar, protestar, o imenso catálogo de erros e acertos que nos permitiu dar saltos impensáveis. A gente já nem se lembra bem de quem foi, nem de onde vem. No entanto, alguns desanimam.
O futebol, pelo seu mediatismo, foi onde o salto teve mais visibilidade, com Mourinho e Ronaldo. Nutridos por lufadas do novo oxigénio, não pediram licença para ter lugar no mundo. Trocaram a mala de cartão pela Samsonite e avançaram com uma arrogância que causou no lado de cá um misto de orgulho e vergonha alheia. Sacudiram a velha inferioridade e, sem medo de cair no ridículo, desafiaram ingleses, espanhóis, italianos, apoiados na enorme mobília do seu ego e na fé no seu trabalho.
E o desafio continua, agora numa fase crepuscular, mas capitalizando ainda o resto do caminho. O contrato de Ronaldo nas arábias diz mais sobre o mundo de hoje do que sobre ele, pois limitou-se a aceitar uma proposta do mercado, a exemplo dum Beckham, que arrendou o nome por 150 milhões de libras para ser embaixador do Mundial do Qatar, após criticá-lo.
Mourinho foi de "special one" a "happy one" e ganhou a Liga Conferência quando parecia ser o "surviving one". Um troféu menor, mas um troféu. Com mais ou mais ou menos polémicas, cada triunfo deles foi uma ruidosa pegada de Portugal no barro do planeta, longe da argila discreta e dócil de avós e pais, tornando os palcos acessíveis a quem veio depois. Em França, até o pacato Paulo Fonseca gritou a um rival: "don"t speak with me!" Se já é arrojado um português falar em inglês a um francês em casa dele, gritar é prova que acabou o come-e-cala, a vénia.
No último Brasileirão, Abel Ferreira, Vítor Pereira e António Oliveira lideraram o ranking da indisciplina, deixando a Luís Castro o papel do tuga moderado. Este ano, a esquadra portuguesa contava oito misteres, mas dois caíram no começo.
Pode ser bizarro evocar Abril pelo lado refilão, mas mal do povo que não refila e não tem um pingo de imodéstia. O reverso da medalha é perder o pé e cair na trapalhice, no vale-tudo, recaídas na doença infantil de encarar a coisa pública como um recreio. Daí a saudade patológica que alguns sentem dum pai severo que endireite a canalha. Um manguito para esses - e para os melhores de nós que não se chegam à frente para não sujar as mãos.
Guardado em naftalina, o beato de Santa Comba ri-se da borga na TAP e diz: "não conseguem governar-se em liberdade, eu sabia!" Mas a liberdade é só o caminho, não a meta. Mude-se de mister quando for preciso, pois o clube será o que fizermos dele. Somos livres para isso, mas ser livre é cansativo. Metade nem se dá à maçada de votar. Outros já fazem a sua parte ao pagar a cota, os impostos. O seu desporto é o apupo na bancada.