FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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É cedo para saber se o petardo mediático que Ronaldo lançou para o campo amolgará a selecção. Uma coisa é certa: estaremos no epicentro dum Mundial que tem rivalizado em polémica com a cimeira do Egipto sobre alterações climáticas.
Não pela coincidência, mas pela indignação que tem levantado o saldo de migrantes caídos nas obras dos estádios. Mas metade dessa indignação teria dado jeito para travar, em tempo útil, a entrega dum torneio a um país que, além de viciar os dados, nunca escondeu o seu palmarés em matéria de direitos humanos.
Agora não faltam figuras públicas e anónimas a dar ao dedo no Instagram reconfortando o indignado distraído que há em nós, embora a maioria desconheça como vivem outros migrantes em Tavira e Odemira na apanha de abacate e frutos vermelhos. Outros preferem engolir a tabela de bons costumes a ser observada no Qatar - afinal de contas é só um mês a gasosa e água lisa, roupa modesta, sem exibir afectos em público porque aquilo é terra de respeito e não de indecência ocidental.
Um dos indignados é Joseph Blatter, responsável pela adjudicação da empreitada. Blatter arrependeu-se do erro e ajustou contas com Platini - então presidente da UEFA. Porque errar é humano, sobretudo quando se é enganado por um facínora como o antigo craque gaulês. Blatter torcia pela outra candidatura, dos Estado Unidos, e seria um gesto de paz e diplomacia entre impérios desavindos ter o Mundial em terras do tio Sam depois de ter acontecido em terras do tio Ivan. Uma bofetada de luva branca que o futebol daria aos tipos da política!
Mas Blatter foi traído antes do decisivo congresso da FIFA, em 2010, quando Platini foi chamado ao Eliseu e trouxe ordens para dar o voto da UEFA aos árabes porque o presidente Sarkozy tinha almoçado com o príncipe herdeiro do emirado.
O certo é que, meses depois da decisão, a França vendeu caças Mirage ao Qatar no valor de 14, 6 mil milhões de dólares. Blatter põe-se na pele do ingénuo apanhado numa negociata de alto nível, que pode bem ser verídica. Porém, em 2015, no seguimentos das investigações que removeram Blatter da presidência da FIFA, as instâncias que podiam reverter a decisão não moveram um cabelo nesse sentido. Tirando os rezingões habituais, não houve sobressaltos, vingou o "business as usual".
Ao ver uma reportagem sobre estádios climatizados na orla do deserto, talvez com mictórios revestidos a folha dourada, associei o Mundial às alterações climáticas. O tempo de bater em panelas foi ontem e é hoje, não quando os indignados tardios marcharem com galochas Gucci pelo Terreiro do Paço. Mas, perante o impasse da COP, há quem aponte o dedo aos jovens garridos que ocupam escolas em protesto, herdeiros do planeta enfermo. Deviam andar em praxes que ensinam a obedecer aos Blatters desta vida, gente que sabe sempre o que é correcto nos gabinetes do poder, para se penitenciar depois num chalé suíço.
Quanto ao petardo de Ronaldo, pode dar em embaraço seguido de depressão, ou em epopeia. Até lá, em frente Portugal.