PASSE DE LETRA - Opinião de Miguel Pedro
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Meditações futebolístico-filosóficas a propósito do segundo golo do Benfica no dérbi lisboeta: Santo Agostinho, que foi bispo e filósofo no séc. V, escreveu que todos nós sabemos muito bem o que é o tempo, mas se nos pedirem para o explicar, não conseguimos. É o mesmo com a "verdade desportiva": todos sabemos o que é, mas cada um de nós dá uma explicação diferente daquilo que ela é.
Não devemos estranhar: é que o próprio conceito de verdade teve, ao longo da história do pensamento, vários significados. A filosofia clássica vê a verdade como "correspondência": uma afirmação será verdadeira se corresponder a factos reais.
Aqueles ex-árbitros e outros especialistas que escrevem nos jornais, esforçam-se muito para descrever, com pormenor, todos os factos relacionados com a jogada do golo, para defenderem que o lance foi ou não foi bem ajuizado pelo árbitro do dérbi. Mas, ao ouvi-los, percebemos que, ainda assim, persiste a dúvida sobre a verdade daquele lance, pois uns consideram que o lance foi legal e o golo bem validado e outros defendem - com os mesmo factos - o oposto.
Então, quem é o portador da verdade? Parece que teremos que mudar o conceito de verdade. Foi o que sucedeu na filosofia, com pensadores como Quine ou Rorty, já no sec. XX, a dizerem que a verdade é relativa à "coerência" de determinada afirmação com o sistema de crenças que a suporta. Assim, para os benfiquistas (que têm a forte crença que o seu clube é o melhor, que nunca é beneficiado e é sempre prejudicado) o lance do golo é totalmente legal e respeita a verdade desportiva. Para sportinguistas e portistas (que têm a forte crença que o seu clube é o melhor, que nunca é beneficiado e é sempre prejudicado), o golo foi ilegal e deveria ter sido invalidado.
Porque é que - pergunta-se - existirá este relativismo sobre a verdade desportiva? Esta pergunta alerta-nos para um outro conceito de verdade na filosofia contemporânea: o conceito pragmatista de verdade. Para os pragmatistas, uma afirmação será verdadeira se for útil para as pessoas nela acreditarem, ou, dito de outro modo, será verdadeira a afirmação que for mais consensual. Assim, para um jornal cujos leitores são predominantemente benfiquistas, a afirmação que o golo do dérbi foi legal é verdadeira, por ser mais útil para o jornal (mais vendas) e mais consensual para os seus leitores. E para os jornais com outras "cores", a afirmação contrária é verdadeira pelas mesmas razões. Por isso, no final disto tudo, só poderemos afirmar, como Sócrates, que, sobre "verdade desportiva", eu só sei que nada sei.