FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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Não bastava uma pandemia, tinha de vir o espectro duma guerra mundial. Talvez seja resultado da brusca aceleração da História: o que várias gerações não viram numa vida veem agora no grande canal planetário.
Neste streaming dantesco, quem sofre ao longe perturba quem observa no sofá. Não é difícil avaliar os danos. Está instalada uma atmosfera de palheiro prestes a ser ateado por dá cá aquela palha. As pessoas ficam irritadiças. Os mais sensíveis e os mais impulsivos cedem primeiro. Logo a seguir à agressão russa, eclodiram cenas duma violência inaudita entre adeptos mexicanos de futebol que levaram à suspensão do campeonato.
Em Belo Horizonte, recontros entre claques de dois clubes da cidade resultaram numa pessoa baleada de morte. Em Arnhem, na cândida Holanda, não chegou ao fim o jogo da primeira liga entre Vitesse e Sparta de Roterdão, por invasão de campo dos adeptos da casa e ataque ao guarda-redes adversário. Aqui, um jogo de juvenis entre Sousense e Gondomar descambou em pancadaria entre familiares dos jogadores. Tudo se filma, nada se perde, é a nova lei de Lavoisier. Que aconteça em pontos longínquos e tão diversos, pode ser coincidência, até por não ser inédito, mas não é impunemente que a catadupa de barbárie e caos inunda os lares, numa fronteira cada vez mais delicada entre informação e volúpia mediática. Até se tornar uma rotina e ir saindo da ordem do dia. Pelo sim pelo não, dou comigo a deixar entrar furões na fila do trânsito e a promover o apaziguamento dos povos em pequenos gestos quotidianos. É um modo de prevenir o Putinzinho que dorme em nós - e que pode acordar quando e onde menos se espera.
Dizem que o futebol é um substituto lúdico-simbólico da guerra, mas torna-se irrelevante quando os mastins saem à rua. A fé na Humanidade é posta à prova, apesar de todas as conquistas. Bielorrússia e Rússia estão banidas das competições internacionais, e isso é um péssimo augúrio. Nem nos piores dias da guerra fria se chegou aí. Khruschev e Brejnev eram meninos ao pé de Putin. Cinco anos depois de erguerem o muro de Berlim, quando também era condenado na ONU pela guerra em África, Portugal enfrentou a União Soviética no Mundial de Inglaterra, pelo terceiro lugar. Os soviéticos tinham então o melhor guarda-redes do mundo, Lev Yashin, vencedor da Bola de Ouro - há fotos de Eusébio com ele, Pantera Negra e Aranha Negra num abraço fraterno. O futebol dispunha dum salvo-conduto por ser o lenimento dos povos, apesar do que acontecia no Vietname, no Laos, no Camboja. Tudo demorará a remendar. Teremos sirenes, refugiados, contrainformação, a realidade mascarando-se momentaneamente de ficção para relembrar o sentido das bestas do Apocalipse que, após 80 anos de repouso na sua urna, estão de novo à solta na Europa.
O Z da horda invasora não é de Za Pobedy, "rumo à vitória" em russo, é de Zorro, o dandy defendendo a Rússia do ogre ocidental. Saúdem o vizinho e sejam gentis no trânsito. E no futebol. Porque a economia de guerra não esquece ninguém.