O tráfico de emoções em que o futebol caiu impede uma ligação emocional de muito tempo
PLANETA DO FUTEBOL - Opinião de LUÍS Freitas Lobo
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1 - Houve um tempo em que os jogadores passavam uma vida inteira ligada a um clube. Confundiam-se com ele e o seu símbolo. Encontrar hoje histórias dessas é quase uma quimera perdida.
O tráfico de emoções em que o mundo do futebol caiu impede que essa ligação emocional dure muito tempo. Os símbolos são espécies em vias de extinção. Assistir, por isso, em Porto Alegre, neste novo universo disfuncional, à despedida de Andrés D"Alessandro do Internacional, em pleno relvado do Beira-Rio, com a multidão cruzando aplausos com lágrimas, foi como reencontrar essa essência dum futebol de outras eras.
2 - O mais fascinante foi como tal sucedeu num importante jogo do campeonato brasileiro, com o Internacional pressionado para ganhar, e não num particular de homenagem criado para o efeito.
D"Alessandro queria terminar como sempre viveu durante onze anos. Dentro do relvado, camisa 10 do "colorado" e jogando naquela posição linda do "fútbol" latino-americano, a de "enganche", na qual nascera pelo início do milénio no River Plate.
Poderia ter sido um símbolo dos "milionários" de Buenos Aires mas os desígnios do futebol levaram-no para o sul do Brasil.
Antes, quando ainda "pibe" de 22 anos saiu para jogar na Alemanha, no Wolfsburgo, tendo depois vagueado pelo Portsmouth e Saragoça, nunca encontrara o seu verdadeiro lugar. O mágico "El Cabezón" não encaixava no futebol europeu onde o "enganche" tem de aprender a defender para ser bem visto pela maioria dos treinadores. Nunca entendeu bem isso. Ele queria era, nos jogos, obrigar os adversários a defender, não o contrário. Estava deprimido no San Lorenzo quando, em 2008, surgiu o convite do Internacional. Iniciou, então, o maior romance de amor futebolístico, feito de fintas e raça, da sua vida.
Venceu a Libertadores em 2010 (o time que tinha Sóbis, Damião e Taison na frente, com Tinga e Guinazu a lutar atrás) e, com o tempo, subiu à eternidade (517 jogos, 13 títulos conquistados) como um dos melhores jogadores da história do "colorado" (junto, num onze com Falcão, Claudiomiro e os golos de Valdomiro).
3 - Foi, então, que fixou uma meta: parar no dia em que fizesse 41 anos! Só faria sentido, porém, fazê-lo no Internacional. Era, para isso, preciso que o clube o quisesse de volta mas mal ele sugeriu a ideia foi recebido como herói e assinou um contrato de quatro meses que terminaria por volta de 15 de abril, data em que completaria os 41 anos. Assim foi. Após essa data, existia, a 17, no calendário, o jogo com o Fortaleza para a segunda jornada do Brasileirão. Referência do onze, D"Alessandro foi, naturalmente, escalado de início, capitão com a n.º 10.
Em campo, fez o golo do empate, festejou enlouquecido, quase foi expulso por reclamar na cara do árbitro um penálti marcado contra que deu o empate ao Fortaleza e, aos 70 minutos, esgotado fisicamente, foi substituído por Caio Vidal. Era o final de carreira, a despedida com que sempre sonhara. Foi no banco que saltou, já mal conseguindo andar, para festejar o golo da vitória marcado no último minuto.
No final, como na altura da saída do gramado no momento da substituição, não segurou as lágrimas. As mesmas, com toda a família junta, que cruzaram, após o jogo, as palavras de despedida no centro do relvado falando à "multidão colorado" de coração nas mãos.
4 - O estilo de jogo de D"Alessandro cada vez mais perde espaço (diria, lógica tática) num futebol que desconfia de quem quer, como princípio de vida em campo, tirar partido do jogo.
"El Cabezón" nunca foi, porém, só um ilusionista. A raça com que tanto fazia um drible alucinante como, logo a seguir, recuava para fazer um carrinho e roubar a bola, cruzava-se em lances sucessivos no jogo. Por isso, vê-lo partir é como assistir a mais uma última dança do futebol que me fez sonhar. Existirá um local imaginário onde, ele como outros da sua casta emocional, possam voltar a jogar juntos. Entretanto, ficará para sempre esta última noite de 2022 no Beira-Rio.