FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
Corpo do artigo
Portugal parece ter-se apaixonado por motos. Ao fim de semana, há cada vez mais bombas de alta cilindrada rugindo em fila pelas ruas e junto às zonas balneares. Há quem fale num efeito Miguel Oliveira, um novo herói nacional apontando ao trono de Ronaldo.
Lembro-me da história dum médico que, perante o pedido do filho para ter uma moto, levou-o à unidade de traumatizados do Hospital de Santo António para o demover, mas o apelo da vertigem foi maior. Quem a tem, sorri com os olhos ao falar da sensação de liberdade, do toque epidérmico com o vento, do sentido comunitário que junta motoqueiros em Faro todos os anos num relaxado Easy Rider de classe média.
Tenho um relacionamento distanciado com os desportos motorizados, talvez por causa do ruído e do cheirete a gasolina, mas dou comigo a pensar no que sentirá um pai, uma mãe dum corredor de motos. São coisas misteriosas para um leigo, mas respeitáveis para quem ouve um chamamento que implica a arte da queda, a mestria no jogo de harmonizar o corpo humano com a força de gravidade da Terra em cima duma moto veloz.
Isto vem a propósito das últimas notícias sobre a Ilha de Man, no mar da Irlanda, no triângulo Dublin-Belfast-Liverpool. Ao contrário da outra ilha a sul do arquipélago britânico, Wight, famosa pelos míticos festivais de música pop dos anos 70, Man é famosa pelas corridas de motos. Da sua fama faz parte uma estranha relação com a morte, que os participantes veem como uma celebração da vida. São peregrinos a uma espécie de deus pagão motorizado a que pagam um tributo anual feito de risco e desafio. Um deles explicou que não quer chegar aos cem anos sem ter feito nada. Este conceito de nada é fascinante, remete para o tédio e para a melancolia do guerreio aposentado, algo que preside ao desporto radical, enfrentar o medo, testar limites com shots de adrenalina, juventude eterna em corpo e espírito.
Mas eles não gostam que se compare competir em Man a um desporto radical. Man é outra coisa, é o perigo supremo, e viver é perigoso faça-se o que se fizer, e eles não querem morrer com a sensação de não terem feito nada de extraordinário, como desafiar o alcatrão de Man. Ao historial de mais de cem anos do circuito corresponde um rol de 265 vítimas, 2,5 por edição. Uma das provas é um contra-relógio e os corredores vão partindo de 10 em 10 segundos em ultrapassagens que atingem os 300 à hora, numa estrada de 52 quilómetros que cruza vilas e florestas.
Há gerações amputadas de vários membros, mas os descendentes substituíram-nos para manter a tradição de pagar o tributo às corridas. Um deles afirmou que é difícil amar uma coisa que pode ser tão cruel, mas se não fosse amor não voltaria. A população da ilha decuplica durante o evento e a economia local está bastante dependente dele. Só este ano, segundo li, morreram cinco participantes. Entre eles, pai e filho, lado a lado, numa prova de sidecars. Talvez Man já não seja um desporto, mas o poço da morte que até o circo deixou cair do seu cartaz.