VISTO DO SOFÁ - Um artigo de opinião de Álvaro Magalhães.
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Rui Pedro Braz, director-geral do Benfica, foi expulso do banco durante o Benfica-Vizela, depois de ter insultado a mãe do árbitro, em modo de grunho primitivo. Nada mais natural. Tratando-se de futebol, até uma conversa televisiva de chacha pode acabar em pancadaria, como aconteceu no Canal 11, entre Maniche e o moderador Pedro Sousa.
O que deu relevo ao incidente de Rui Pedro Braz foi a contradição: quando ele era comentador e educador das massas na SIC, onde também fazia de conta que não era adepto do Benfica, clamava «Isto tem de acabar!», referindo-se às reacções abruptas dos bancos.
Pois bem, essa contradição, mil vezes repetida nas redes sociais, para gáudio dos adeptos dos rivais, serviu o propósito de achincalhar a antipática e como que desfocada personagem, que parece ser incapaz de colher simpatias, mesmo entre os da sua tribo. Mas também ilustra na perfeição o que o futebol nos faz, enquanto adeptos, transportando-nos para uma outra natureza, irracional e, portanto, mais próxima da nossa condição animal. Já não somos primitivos, mas ainda não somos sábios, seres superiores, vamos a meio de um processo, o que nos impõe uma dupla natureza (metade racional, metade irracional) e faz de nós criaturas instáveis, neuróticas, duais.
Rui Pedro Braz deu-nos um exemplo obeso e caricatural dessa dualidade, que não é uma contradição, mas uma condição de todos os que vivem com paixão o futebol, que se dirige à nossa irracionalidade, pondo em acção os seus turvos mecanismos. Também o fleumático Rúben Amorim, que é um exemplo de controlo e urbanidade, mostrou ao mundo, no último Sporting-FC Porto, o rufião que também é capaz de ser. Vimo-lo a avançar, no final do jogo, para um impávido Sérgio Conceição, colando a sua cabeça à dele, sem parar de vociferar e de gesticular. Quem é este tipo?, perguntámos, incrédulos. Era o outro Rúben Amorim. Também ele é um e outro, também ele vive o incómodo de ser habitado por duas forças contraditórias.
O futebol tem o condão de nos revelar um outro lado, normalmente oculto, das pessoas. O que acontece mais facilmente se houver frustração, o que logo desperta instintos primários. Foi o caso de Braz, que via a sua equipa quase a perder em casa com o Vizela, e de Amorim, que acabara de sofrer uma derrota caseira amarga. E, para usar mais um exemplo recente, também foi o caso do presidente do PSG, Al-Khelaifi, que, depois da eliminação da sua equipa milionária, em Madrid, forçou a entrada no balneário do árbitro (vá lá, que se enganou) e, à falta de melhor, partiu a bandeirinha de um dos assistentes. Quando viu que um funcionário do Real Madrid o filmava, com o telemóvel, gritou: "Vou matar-te". O futebol, já o disse, faz disto bem: um grunho pré-histórico, como Braz, um inesperado rufião, como Amorim, um potencial assassino, como Al-Khelaifi. Tudo gente que se pensava que não existia, e afinal havia.
O futebol concede-nos uma outra vida, com tudo o que uma vida tem. E o preço que se paga por esse acréscimo (umas tantas figuras tristes, como estas, e outras do género) nem é muito alto.