FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Há treinadores que se irritam nas conferências de Imprensa. Às vezes com razão. Há perguntas malévolas, outras apenas banais.
Em São Paulo, ao ser questionado sobre o eventual despedimento, Vítor Pereira respondeu com o desafogo da sua conta bancária. Antes, ainda em SP, Abel Ferreira, numa das suas habituais homilias aos brasileiros, afirmou que em cada dez pessoas que falam de futebol só uma sabe o que diz - e sugeriu aos jornalistas que descobrissem os óculos de Penafiel.
No United, Mourinho envolveu-se numa disputa mediática com Noel Gallagher, cantor dos Oasis e fã do City, por lhe chamar defensivo. Um dia, a Sky Sports convidou Noel para comentar o derby e Mourinho gabou-lhe a coragem, pois ele não se atreveria a analisar o festival da Eurovisão por falta de conhecimentos musicais. Mais tarde, no Tottenham, admitiu que convivia melhor com a crítica porque a beleza do futebol incluía a possibilidade de discuti-lo com um grande treinador, algo de impensável com um engenheiro da NASA, sobre ciência aeroespacial. Em Roma, referiu-se a uns Einsteins com a mania que sabem de futebol.
A questão é pertinente: não se sabe o que leva tanta malta a arengar sobre diagonais e movimentos basculantes. No entanto, os treinadores deviam ver esta mania pelo ângulo da paixão inexplicável e não pelo da ingerência profissional.
Os escritores adoravam ter tanta gente com a mania que sabe de literatura. O poeta Carlos Drummond de Andrade confessava-se aturdido pelo futebol, as suas crónicas foram o observatório dum mistério que não entendia mas amava, mas ele só escrevia sobre futebol porque o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues tinha elevado a crónica da bola a um género literário.
A mão de Nelson para a frase orelhuda fez furor: "O Flamengo tem mais torcida, mas o Fluminense tem mais gente". Era adepto do Flu com cadeira no Maracanã, apesar de ser míope e não usar óculos, por vaidade. Quem o diz é Ruy Castro, seu biógrafo. Como o cego com ouvidos de tísico, reorganizava literariamente os factos, daí as crónicas serem às vezes melhores do que os factos - isto é, os jogos. Nelson herdara o jeito do irmão mais velho, criador nos jornais da rivalidade Fla-Flu, até aí inexistente, e promotor de jogadores ao puxá-los para as páginas sociais, como artistas que eram, daí o nome oficial do Maracanã ser Estádio Jornalista Mário Filho, e nem Pélé o desalojou.
Moral da crónica: o futebol pertence a ignorantes, míopes, apaixonados. O treinador devia falar dele como Carl Sagan falava do Cosmos: com maravilhamento. Não é preciso ir ao ponto de trocar ideias com a bancada, como fez o treinador argentino Gabriel Milito; basta afagar o conhecimento ilusório que o adepto tem do futebol. A televisão corteja-o com hashtags e incita-o a lançar bitaites no Twitter em emissões interactivas. Somos o caro assinante, o candidato a ser aquele que, em dez, sabe o que diz. O treinador não tem que ser um Einstein para ler sinais. O pior cego é o que só vê a bola, dizia Nelson Rodrigues.