O futebol é tão inerente à vida humana que nem as guerras mais atrozes o conseguem liquidar
VISTO DO SOFÁ - Opinião de Álvaro Magalhães
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É verdade que saímos das cavernas e agora passeamos entre as estrelas, no espaço sideral, mas algo em nós permanece tribal, territorial, primitivo. Somos uma espécie de símios evoluídos (mas não muito), como dizia Stephen Hawking, e ainda há muitas sombras escuras na nossa mente. Daí que a guerra caminhe connosco, sempre ao nosso lado.
Felizmente, também há a bola e, graças a ela, o futebol, que é, na sua essência, um ritual de celebração da fertilidade e da continuidade da vida, funcionando, por isso, como resistência à ideia de morte, que é a substância da guerra. E é tão inerente à vida humana, o futebol, tão necessário, que nem as guerras mais atrozes o conseguem liquidar, sequer interromper.
Na 1ª. Guerra Mundial jogou-se nas condições mais inóspitas, até nas trincheiras. Em 1914, em Ypres (Bélgica), soldados ingleses e alemães suspenderam, mais do que uma vez, a batalha para jogarem futebol, em terreno neutro. Na 2ª. Guerra Mundial, jogava-se em Inglaterra a "War time League"", com um limite de 8.000 adeptos nas bancadas, por temor aos bombardeamentos, mas as finais, em Wembley, reuniam 60.000, desafiando até a Luftwaffe.
Porém, a história mais tocante desta guerra viveu-se numa Kiev ocupada pelos nazis. Josef Kordik, um alemão que tinha uma padaria na cidade, era um adepto fanático do Dínamo, que fora desmantelado. Por isso, procurou e conseguiu encontrar a maioria dos jogadores (alguns mendigavam nas ruas), que reuniu na sua padaria, onde trabalhavam. Formaram, a partir daí, um novo clube, o FC Start, que venceria os conjuntos mais fortes do exército alemão, tornando-se um símbolo da resistência dos ucranianos.
Por fim, os alemães reuniram a equipa mais forte para um jogo decisivo, no repleto estádio Zenit, em Kiev. Pouco antes do início, um oficial da Gestapo entrou no balneário dos ucranianos e proferiu a seguinte sentença: «Se vocês ganharem, não sai ninguém vivo». Ainda assim, os ucranianos voltaram a ganhar e pagaram essa vitória com a vida.
Joseph, o padeiro alemão cuja primeira pátria era o seu clube, também foi fuzilado. Hoje são todos heróis da Ucrânia e o seu exemplo de coragem e resistência é ensinado em todas as escolas. No estádio Zenit ainda hoje há cadeiras gratuitas para os que assistiram a esse jogo mortal; e uma placa onde se lê: "Aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor".
A guerra vive aninhada no coração dos homens. É o jogo da morte. Mas o futebol também lá vive e é o jogo da vida. Não pode parar. Daí que o presidente da UEFA esteja a ponderar a organização do campeonato da Ucrânia num dos países vizinhos.
E por mais atroz que seja o que está a acontecer no país, é certo que, passado o choque inicial, os mais jovens serão os primeiros a atrever-se a sair para uma rua, um jardim ou um descampado para darem pontapés numa bola. Foi assim no Kosovo, no Iraque, na Palestina, onde quer que houvesse uma guerra. E também essas simples peladinhas são um acto de resistência à brutalidade e ao absurdo da guerra, pois exprimem um desejo veemente de que a vida triunfe e possa prosseguir.