FOLHA SECA - A crónica quinzenal de Carlos Tê em O JOGO
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Misturem-se restos de imperialismo inglês com bravatas hispano-catalãs, cubra-se tudo com dinheiro árabe e obtém-se o Manchester City. Quatro anos e mil milhões de euros depois, Guardiola não ganhou a Champions - talvez por não haver Xavi à venda, Iniesta, Messi.
Picardia não é ofensa, é tributo velado - Freud explica
De permeio, a UEFA abriu um processo por injecção suspeita de fundos mas ficou-se por uma coima que mereceu o riso de Mourinho e Klopp. O City espelha em toda a sua plenitude o novo-riquismo que tomou conta do futebol. As bocas de Guardiola foram amuos de monarca e Fernandinho foi um ventríloquo angelical insinuando antijogo e ambulâncias.
Mas se Conceição foi certeiro nos reparos, já a Newsletter foi infeliz, começando pelo ataque a Bernardo Silva e acabando no tom "a gente faz tanto e não dos dão valor". Querem louvores em caixa alta na Imprensa de Lisboa? Desde quando? Deixem-nos para quem precisa.
Contestem o que acharem mal, mas temam os elogios, que trazem o amolecimento, e não é segredo que o clube amoleceu até ficar nas lonas. O FC Porto passa bem sem loas da capital porque as obtém do mundo, como atesta o palmarés dos últimos trinta anos, mas é escusado esfregá-lo na cara do país.
Está lá, irremovível, e faz mais mossa calado do que tangido. A lamúria tem uma faceta provinciana que não fica bem a quem é grande. Grandeza apregoada soa a bazófia, os invejosos que a debulhem nos painéis. A dimensão nacional que alguns desejam é um brinde envenenado, e só serve para decorar a lareira. Sobretudo, não venham com desamor. A força não vem do amor nem do reconhecimento, vem das vísceras - e do fazer melhor, mas para isso convém não amolecer.
Qual é o problema em Bernardo Silva twittar que "esta soube bem"? Sabendo o que está em causa, a alusão ao "conhecido internacionalmente por ter sido condenado por racismo" é muito ao lado. Que tal inverter o ponto de vista?
O Porto é uma espinha atravessada no benfiquismo de Bernardo, e só jogando pelo City ele cumpriu a fantasia de ganhar. Picardia não é ofensa, é tributo velado - Freud explica. Ser adepto é isso mesmo. O Benfica é uma espinha no portismo de muitos, como o meu, mas daí a descer ao nível da "corja portista" do fanático da Benfica TV vai um deserto inteiro, ou imitar as virgens pudicas zurzindo Villas-Boas por admitir que gosta que o Benfica perca.
Querer misturar um bom processo defensivo com antijogo é piada
Querem arrancar o adepto do profissional? Abrir mosteiros? Banir a picardia? Dizem que uma imagem vale mil palavras - a de Luís Gonçalves e Bernardo Silva à conversa no relvado foi eloquente. Talvez até tenham desejado bom natal.
Do jogo contra o City, extrai-se uma lição para treinadores dos grandes portugueses quando não ganham aos pequenos. A diferença orçamental é a mesma, o afogo também, daí o sabor a vitória que há em certos empates.
Querer misturar um bom processo defensivo com antijogo é piada. Ser grande também é ser capaz de resistir a quem exige vassalagem porque ser melhor já não basta. O City deixou ser um clube e tornou-se um banco de investimento. Tirá-los do sério é um dever.