PASSE DE LETRA - Uma opinião de Miguel Pedro.
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Se quisermos saber de que matéria o futebol é feito, poderemos rever os jogos entre Real Madrid e Manchester City, das meias-finais da Champions: emoção, qualidade técnica, tática, sonho, pesadelo, heróis, superação e magia...tudo isso esteve lá. Li e reli, na minha mente, o artigo imaginário que Javier Marías, escritor madrileno e fervoroso adepto madridista e responsável por eu gostar do Real Madrid, poderia ter escrito após o jogo da passada 4ª feira.
Poderia substituir no seu texto que não existe Benzema, Rodrygo, Asensio, Courtois e outros, por Di Stefano, Puskas, Gento, Del Sol e outros, e teria a revisitação da sua infância, quando, para o escritor-criança, os jogadores eram verdadeiras personagens mitológicas, como que saídos dos contos homéricos. Pessoalmente, exultei com o resultado final, não só porque gosto do Real (ainda que por razões literárias e não estritamente desportivas), mas também porque se tratou de um confronto entre um clube e uma sociedade comercial, tendo o clube ganho.
O Real Madrid é um clube "à moda antiga", detido pelos seus sócios (mais de 100 mil) e sem que o seu capital seja transacionado em bolsa e têm espanhóis e adeptos madridistas a liderar os seus destinos. Já o City é detido por um estado do petróleo, os Emirados Árabes Unidos e é governado por um Conselho de Administração composto por um árabe, um chinês e um espanhol. Sou daqueles idealistas que consideram que os clubes desportivos representam valores universais do desporto, mas também os das suas coletividades ou das comunidades que representam e que o capitalismo globalizado veio, no futebol, confundir isso tudo, permitindo olhar para este desporto só como um negócio sem nacionalidade e sem ligação à comunidade. Daí que seja fundamental que o clube e a sua SAD sejam sempre controlados pelas mesmas pessoas, pois só assim se assegura que a SAD representa as "gentes da terra".
Por isso, li com satisfação a história do Torreense, recentemente promovido à Liga Sabseg, que, em 2019, conseguiu que "gente da terra", por amor ao clube, arrecadasse 350 mil euros para comprar a SAD a um grupo de investidores chineses, o que permitiu unir toda a comunidade em redor de um desígnio comum: fazer regressar o clube/SAD às suas gentes e fortalecer desportivamente a instituição, o que foi conseguido, com a subida de divisão. Uma história com final feliz.