FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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Às vezes, as pessoas do futebol lembram crianças que não sabem o que querem. Depois de tantos anos a suspirar pelo VAR, sente-se um certo desencanto com o sistema, sobretudo na interpretação de imagens que não dissipam toda a dúvida.
Houve quem julgasse que o VAR livraria o futebol da mancha do erro, mas erro e dúvida constituem o pecado original do futebol e nenhum cordeiro tecnológico será capaz de o remir.
Tem acontecido de tudo: linhas de fora de jogo mal postas, falta de ângulos esclarecedores nas áreas, falhas de energia, baterias sem carga, métodos arcaicos como ligar para a central para atestar a justeza dum penálti - mais a contestação do uso do telemóvel por não constar nos regulamentos e nos protocolos.
Como se não bastasse, também o novo método de contar o tempo ficou debaixo de mira. Tanto se exigiu que a vaca sagrada do tempo útil viesse ajudar a combater as simulações e as sonsices, e agora que ela se apascenta pela relva torcem-lhe o nariz. Dois meses depois da nova contagem estar em funções, a cargo do AVAR, que anota ao segundo cada paragem, festejo, análise, lesão, substituição, e já há saudades do tempo antigo.
Em breve alguém preconizará o regresso a um passado idílico de tempo a olho e sem VAR, como desabafou Schmidt depois de perder um jogo. Foi o que fez Guardiola, irritado por perder a Supertaça depois de levar um golo do Arsenal nos descontos paridos pela nova contagem. Se fosse ao contrário, estava tudo bem, mas Guardiola disse que o novo método apenas sobrecarregará jogadores já sobrecarregados por épocas sobrecarregadas.
Talvez haja um paradoxo a desenhar-se: pode ser mais importante gritar pela verdade desportiva do que alcançá-la. O grito é um exercício de indignação e de limpeza dos pulmões, e a tecnologia ameaça-o com o rigor. Quanto mais se exige que a grande lupa monitorize o futebol e faça dele um templo sem mácula, mais a saudade dum futebol sem pinças de Big Brother parece instalar-se nos fãs. E o certo é que, há dias, num jogo da Taça da Liga Inglesa, recrutaram um juiz de linha no público, como prevê a lei geral, perante lesão do último juiz disponível.
O grito é importante, veja-se a entourage dos jogadores nas redes sociais. Até aqui, só uma esposa mais arisca se habilitava a protestar contra a receita de banco imposta ao cônjuge por um treinador. Agora, os agentes já afrontam selecionadores que não convoquem os seus administrados. Acreditam que a selecção não é Santa Casa mas a casa de quem grita mais, ou de quem faz mais circo, como diria Ronaldo que, a propósito da polémica do fim de semana, relançou o anátema da vergonha sobre a Liga que o aleitou. Logo ele, assalariado duma Liga que branqueia um país onde a polémica é serrada pela raiz - e às vezes empacotada em malas, como aconteceu a um jornalista saudita. Mas Ronaldo é um profissional e não se mete nessas coisas. E, quanto a polémicas, só quando vai para o banco. Ainda assim, é melhor jogar na Liga circense dum país livre, embora se ganhe menos.