PLANETA DO MUNDIAL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
Corpo do artigo
1 Na conferência antes do jogo, Gustavo Alfaro já causara sensação mesmo sem citar nenhum filósofo, Einstein ou, como gosta, comparar a sua equipas a um carro. Bastou que este, após uma pergunta sobre direitos humanos no Catar que deixou Caicedo em silêncio, olhando perturbado o treinador sem saber o que dizer, se tenha limitado a passar-lhe a mão no ombro: "Não o metam em problemas, estamos todos a favor dos direitos humanos e da igualdade. Eles são jogadores de futebol, têm que estar focados nisso e merecem ser respeitados só por isso", respondeu, levantando as sobrancelhas, sorriso enigmático, como dizendo que vamos fazer um esforço para sair disto a pensar e falar só de futebol durante este tempo.
A sua seleção do Equador, a que mais evoluiu nas últimas décadas na América do Sul (atrás das três clássicas do continente), é das que hoje terá mais direito para falar do jogo como sedução, tal o estilo de técnica e bola de pé para pé que procura.
2 Encontrou, no cenário faraónico de estreia, um adversário preso mentalmente, "medo cénico", que travou, ao pisarem o relvado, a maioria dos jogadores Catar. Até o n.º 10 Al-Haydos, que mete a bola onde quer, ou o veloz criativo Afif, que não conseguiu engatar uma finta ou arranque.
Vivendo no mais perturbante conflito que pode viver uma equipa, a qualidade de jogo equatoriano não tem tido reflexo nos golos que marca. Assim, Alfaro deixou o habitual 4x3x3 e lançou o 4x4x2 com dois pontas-de-lança, metendo a promessa Estrada junto do velho caminhante da grande-área, Enner Valência, um n.º 9 de quem alguns já desconfiavam mas que não falhou, nem tremeu.
De olhar sereno, entrou a adivinhar onde iam cair todas as bolas na área catari (onde o guarda-redes Al Sheeb hesitava) e marcou, na primeira parte, três golos (só valeram dois), dando ao Equador os primeiros festejos deste Mundial (juntos, de joelhos, apontando o céu, como é normal fazer).
3 O Equador tem uma dupla de médios-centro rotativa (Mendez-Caicedo) que, de perfil, pegam nas cordas do meio-campo, embora a diversão esteja nas faixas, com Ibarra e Plata, que podiam ser, pelas características que têm, extremos à moda antiga. Preferem, porém, meter-se mais nas diagonais que tiraram ao futebol os velhos sprints pela faixa até buscar a linha. Sinto falta, confesso, desses extremos sem pé trocado (ou seja, que jogavam no flanco correspondente ao seu pé e cruzavam sempre bem no fim). Se este Mundial me devolver um que seja, já fico contente.
Deu para meter, nos descontos, o melhor marcador da II Liga equatoriana: Rodriguez, do Imbabura SC para o Médio Oriente. O futebol continua a perseguir histórias incríveis. A estrela Afif perdida no deserto e o instinto do velho Valencia.
"Fechado para Mundial!"
A cerimónia de abertura meteu-nos dentro da lâmpada de Aladino sem sabermos o que pedir. A sensação de estar numa história das 1001 noites era tão sedutora como assustadora. Sherazade, condenada à morte, só inventou essas histórias para entreter o Rei todas as noites e, assim, com a curiosidade que lhe criava em querer saber a próxima, conseguiu ir adiando a sua execução.
Não sei que mais histórias contar para salvar este futebol com toalhas na cabeça que me faz ver nele o rosto de Sherazade, por também viver sequestrado por um submundo ao ponto de até grandes equipas europeias serem projetos faraónicos de famílias árabes ultra-milionárias.
O Catar comprou o Mundial, a FIFA negou a realidade e por um mês querem que esqueçamos todas as sombras que o rodeiam. E o mais incrível é que isso vai acontecer mesmo. Ao ver os jogos, ninguém vai olhar para os relvados como ilhas de futebol com muitas violações de direitos humanos à volta. É pura e simplesmente, o futebol como a mais fantástica alucinação do mundo. Lembro um tempo onde o moderno ainda se confundia com o clássico e os jogadores de futebol tinham o poder. Como fazia Eduardo Galeano, já tenho o letreiro na porta, igual ao que ele colocava sempre de quatro em quatro anos: "Fechado para Mundial".
Mente
Os nervos e o "medo cénico" que travou o onze do Catar
Os golos de "adivinhar onde a bola vai cair" de Enner Valência
Técnica
Visão e bons passes de Caicedo, médio do Equador que faz a bola falar
A entrada de Kevin Rodriguez