VISTO DO SOFÁ - Opinião de Álvaro Magalhães
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No fim de semana passado, soube-se que morreu Maria Amélia Morais, de 86 anos, adepta carismática do Sp. de Braga. A Mélinha, como era conhecida, formava uma unidade com o seu clube, que sempre acompanhava, também nos jogos fora e até no estrangeiro.
Certa vez, em Liverpool, teve de vir à janela do hotel saudar os adeptos do Liverpool que ali se juntaram, gritando: «Amélie, Amélie!». Ela respondeu: «I love you!». E aí está a palavra-chave: amor. É disso que é feito um adepto, esse ser extraordinário.
Há os mais devotos, que caminham a pé até Fátima ou correm 1.000 quilómetros em volta do Estádio do Dragão, agradecendo a graça de uma vitória num campeonato.
Há os altruístas, como o argentino Júlio, que ganhou uma fortuna na lotaria, aos 12 anos, e doou o prémio por inteiro ao seu clube, o Godoy Cruz, o que lhe garantiu uma vida de pobreza, passada a limpar as ruas da sua cidade. Puseram-lhe a alcunha de «El loco» (de amor, evidentemente).
Há os infames, que são capazes de assassinar um jogador da sua equipa que falhou um penálti ou fez um auto-golo num Mundial. Há os fanáticos, como o brasileiro José dos Anjos, que tatuou no corpo a camisola do Flamengo, para ser essa a sua primeira pele.
Há os problemáticos, como o argentino Diego Milner, que via todos os jogos do seu clube, o Boca Juniors, infiltrado na claque do adversário.
E há, por fim e abreviando a extensa lista, os mais sensíveis, que se suicidam depois de uma derrota insuportável, como John Macharia, de 28 anos, um adepto queniano do Manchester United que, em 2013, se lançou do sétimo andar de um prédio, em Nairobi, depois da sua equipa perder com o Newcastle por 1-0. «Nós damos a vida por ti», grita-se nas claques, e não raras vezes isso acontece.
E como tão avassaladoras paixões resistem até à morte, talvez nem esses, os que já morreram, consigam descansar em paz e, de um modo que nos é desconhecido, sintam um qualquer apelo quando a sua equipa joga um jogo decisivo.
Foi a pensar nessa possibilidade que um adepto do Bétis de Sevilha quis entrar no estádio com as cinzas do seu pai, que sempre lá tivera um lugar cativo. Levava-as dentro de um frasco de vidro que, antes, guardara pêssegos em calda. Não deixaram entrar o frasco e ele, inconformado, queixou-se ao presidente, Manuel Ruiz Lopera, o que daria origem a um projeto, fracassado, que visava o depósito dos restos mortais dos adeptos no Benito Villamarín e que, na verdade, partia do princípio de que nada pode impedir os adeptos defuntos de continuarem a ver - ou a sentir, não se sabe bem - os jogos do seu clube.
O adepto é a figura mais nobre e respeitável de toda a população do futebol. Fiel até à morte, leal, abnegado, ele ama sem medida e consome-se completamente nessa combustão amorosa.
Quando morre um jogador, um treinador, um dirigente, são sempre muitos os que lamentam essa perda, mas quando morre um adepto, ou uma adepta, claro, como a Mélinha, quem mais sofre e se lamenta é o próprio futebol. Ouvimos o ar silvando nos gradeamentos da bancada, pensamos que é o vento e é ele, o futebol, a chorar.