FOLHA SECA- Opinião de Carlos Tê
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O Bad Boy é um espécime em extinção. Sem ele, o desporto espelha a sua superfície brilhante e essencial, focada na competição e nas regras, como deve ser. No entanto, sem ele, parece faltar qualquer coisa. No grande prémio de F1 da Áustria, Verstappen e Hamilton foram exemplares na censura à conduta do público, que festejou despistes dos rivais e inundou as redes com comentários alarves e invulgares na F1. A FIA ameaçou tomar medidas como reduzir a venda de álcool nas bancadas.
Na final do Grand Slam de Wimbledon, o tenista australiano Nicky Kyrgios também censurou o público, mas apenas para exibir a sua plumagem de Bad Boy, disparatar com o que lhe desse na gana, pôr em alvoroço a paz snobe do court. Começou por imbicar com uma espectadora barulhenta que o desconcentrava - ébria, segundo ele. A organização removeu-a da cadeira, apesar de, segundo ela, só ter bebido um copo de vinho. Seguiram-se resmungos, protestos, incluindo contra a sua própria comitiva, que acusou, por gestos e palavras abundantes, de distraí-lo com indicações que só o atrapalhavam. Metódico e frio, o sérvio Djokovic golpeou-o sem dó e arrebatou o torneio.
Kyrgios é herdeiro do Bad Boy McRenroe, como são Medvedev e Tsitsipas, gente que faz questão de arrear a giga e oferecer entretenimento extra à plateia. Foi multado em quatro mil libras por dizer palavrões perante a família real, que incluía o infante George, filho de William e Kate, impreparado para o vernáculo das ruas.
Além disso, recebeu das mãos da Duquesa de Cambridge o troféu do segundo lugar com um boné vermelho na cabeça, uma cor ofensiva ao protocolo - da realeza ou de Wimbledon. Do protocolo fazia parte uma cerimónia de sociedade recreativa fina, com considerações finais, elogios ao rival, piadas de circunstância. O preço dos bilhetes, rondando as trezentas libras, de acordo com The Times, incluía estes brindes.
Dos públicos que assistem a grandes eventos desportivos, o da bola mantém a reputação de ser o pior, embora se possa dizer, à guisa de desconto, que nada agita tanto as massas como o futebol. O Bad Boy é um herói quezilento, guardião do espírito inicial das ruas, indiferente às consequências dos actos - Cantona, Matterazzi, Gattuso, Edmundo, Ibrahimovic, Balotteli. Este friso, com os dois últimos ainda no activo, representa uma estirpe que teve expoente-mor no galês Vinnie Jones, o jogador mais irascível da história do futebol. Foi esse lado mau que o levou ao cinema, onde fez uma bem sucedida carreira de vilão.
O futebol filtrou os Bad Boys para higienizar o produto e atrair os grandes patrocinadores. Hoje, a travessura maior dum profissional é mostrar o convés do iate no Tik-Tok ou mais uma tatuagem. Ver Kyrgios a praguejar à frente da nobreza foi um retorno episódico a uma figura rigorosamente vigiada. Fez-me lembrar o saudoso John Lennon, em 1963, pedindo ao público nos lugares baratos que batesse palmas ao ritmo de Twist and Shout - e ao resto que sacudisse as joias. Referia-se à rainha no camarote.