PLANETA DO FUTEBOL - Opinião de Luís Freitas Lobo
Corpo do artigo
1 - No plano da criatividade no jogo, existem, como arte de fazer a diferença, duas classes de grandes jogadores: os que assombram porque nunca fazem aquilo que pensamos ir fazer e surpreendem com uma coisa diferente que confunde toda gente (adversários e próprios colegas); e os que provocam na mesma assombro porque, embora façam aquilo que era suposto fazer, não se via, na situação em que estavam (marcação apertada, espaço curto...) que tal fosse possível mas, mesmo assim, fizeram-no e foi impossível os adversários impedirem-no.
O criativo pode, assim, adquirir duas grandes formas de intervenção no jogo. Os primeiros vivem em campo num mundo só deles (embora a equipa depois usufrua desse génio no resultado). Os segundos também têm o seu universo particular, mas vivem num mundo em que juntam a equipa toda dentro dele (fazendo-a a jogar junto).
2 - Não é fácil identificar este segundo exemplar num primeiro olhar. Não são casos de amor à primeira vista. São casos de amor criado com o tempo. Apaixonámo-nos pela personalidade, gestos, sorrisos tímidos e coisas que, vamos reparando, mais ninguém faz.
Um caso desses no futebol atual é Gustavo Scarpa, o criativo-colectivo do Palmeiras, da inteligência e da esperteza, congeminado por Abel. Muitos desses atributos em campo resultam da expressão de como joga Scarpa. Quando ele recebe a bola, percebe-se que lhe cai todo o jogo em cima. No pensamento e na execução, sublimada sobretudo na precisão de cruzamento que mete a bola com os olhos bem abertos para um avançado só encostar na área. Noutras, faz um passe que abre uma clareira onde antes não se via um metro quadrado vazio.
Parece, posto assim, um jogador, pelos ritmos que marca no jogo, desfasado no tempo. O facto de, com estes atributos, só ter ido (aos 28 anos) uma vez à seleção, ajudam a fazer dele esse jogador de criatividade incompreendida. Quando, porém, reparamos que ele não é um exemplar da casta dos nº 10 perdidos de outras eras, mas sim um polivalente (multifunções) que joga em diferentes posições (desde lateral-esquerdo numa defesa a três, em plena final da Libertadores, até extremo aberto, em qualquer flanco ou de diagonais, segundo-avançado no meio, ou recuando no terreno), então vemos o que chamo de jogador "gourmet criativo-táctico": junta várias épocas nele, mas só joga numa, a qual entende melhor que todos em campo. A presente.
3 - Vai no fim do ano, na janela de Janeiro, jogar para Inglaterra. Por fim, após passear nos gramados brasileiros (aconselhando em entrevistas livros para ler, desde Orwell a Dostoiévski), eis a aventura europeia. Será no Nottingham Forest, onde em tempos viveu um xerife usurário, que tinha escondido na floresta o principal inimigo. É bonito pensar que de cada vez que pegar na bola e fazer um dos seus passes, estará, como um Robin dos bosques futebolístico, a tirar o jogo aos ricos para o dar aos pobres e, assim, fazê-los ganhar. No fundo, fazer o que é suposto fazer, mas que ninguém achava que fosse possível conseguir num ambiente tão adverso. É o estilo de Scarpa.
4 - O jogador com desejos criativos comunitários nem sempre é, no entanto, assim tão bem sucedido. Por trás de cada finta, gesto técnico, está muitas vezes um líder que vive sentindo-se só em campo. Num tempo em que se fala tanto de velocidade e urgência no jogo ("o único importante é ganhar"), esses jogadores afundam-se na sua própria genética. Como fossem jogadores esquisitos com duas cabeças. É o que acontece aos jogadores que ainda querem ser um nº 10 como aqueles doutras eras num tempo em que o ecossistema do jogo já não lhes dá oxigénio para respirar em campo.
Vejo o Flamengo e encontro exemplares de épocas distintas, mas sucessivas, que espelham bem essas duas sensibilidades: Diego, poema de técnica, hoje balzaquiano, que nunca percebeu esses "timings criativos-colectivos", e Arrascaeta, que em todos os momentos mostra como é um profundo conhecedor do jogo e que privilegia jogar por identidade, prazer e saber.
O penálti de Benedetto foi o mais longo de sempre?
Existe um livro do argentino Osvaldo Soriano chamado "El penalty más largo do mundo". É a história dum guarda-redes suplente que, finalmente, iria jogar quando o titular se lesiona após cometer um penálti. A equipa ganhava 1-0 e o jogo vale a subida à II Divisão regional. Entra nervoso, mas aquela seria a sua grande oportunidade de brilhar. Quando, porém, tudo se preparava para a cobrança, vários adeptos invadiram o campo, revoltados com a decisão do árbitro e o jogo foi suspenso. Só recomeçaria uma semana depois, com a marcação do penálti, no mesmo campo, sem público e os mesmos jogadores. O guarda-redes suplente teria uma semana para pensar, angustiado, nesse remate e como o defender para ser herói.
Lembrei dessa história, embora por circunstâncias diferentes, vendo como Benedetto rematou e falhou aquele último
penálti na Libertadores contra o Corinthians, já após ter batido um ao poste no jogo. Aquele, no desempate, era decisivo. Chutou tão forte e desviado que a bola subiu como um ovni e só foi parada por dois adeptos no segundo anel do estádio. Toda a Bombonera ficou estarrecida. Foi, que eu tenha visto, o remate mais longo do mundo na cobrança dum penálti. Nunca mais
acabava de voar a bola. Receei até que desaparecesse de vista. Envergonhada, talvez. A seguir o Corinthians marcou e
ganhou. A realidade superou a ficção.
QUEM ME FEZ (FAZ) SONHAR
"Goyco penálti!"
Não foi um guarda-redes fabuloso mas, no Mundial 90, tornou-se lenda a defender penáltis até levar a Argentina à final (em que perdeu 1-0 num penálti): Sergio Goycochea. Era suplente e entrou no segundo jogo devido à lesão grave do titular Pumpido. Sem grande estilo entre os postes, mas brutal e frio nos momentos mais difíceis. Jogava no Milionários da Colômbia e fez depois bom contrato em França, com o Brest. Não atingiu nunca o mesmo nível e abandonou em 98, no Newell"s. Basta, porém, 1990 para ser eterno?