VISTO DO SOFÁ - Opinião de Álvaro Magalhães
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Em Alvalade, os golos belos e raros aglutinaram-se, estranhamente, como se fossem gestos corriqueiros. Num curto espaço de dias, Nuno Santos, Pote e Fatawu marcaram golos invulgares, de grande qualidade estética. Pote e Fatawu fizeram-no do meio-campo, foi esse o espanto. O golo de Nuno Santos, dito de letra, resultou de um gesto a que poucos jogadores resistem; e nem sempre é adorno, brincadeira, pois há situações em que é o movimento mais natural. Porém, o que tornou esse golo de letra excepcional foi a precisão e, sobretudo, a força do remate.
E golos como estes valem tanto como golos normais, mesmo golos de ressalto ou auto-golos dos defesas? Valem muito mais, pois desencadeiam ondas inusitadas de prazer, que sobrevoam até a clubite mais encarniçada. A beleza não tem clube, é de todos. Eu disse todos? Esqueci-me dos treinadores, esses chatos do caraças. As imagens televisivas mostraram-nos um Rúben Amorim arreliado, após o golo de Nuno Santos. «Marcam o mais difícil e falham o mais fácil», resmungou ele, depois do jogo, o que é um belo disparate.
Toda a gente sabe que, no futebol, se falham golos quase em cima da linha e se marcam golos do meio-campo. Acontece que os treinadores não gostam destas súbitas irrupções da beleza, por serem manifestações do talento individual dos jogadores, tantas vezes sufocados pelos seus esquemas dogmáticos, e não construções colectivas, ou seja, obras do treino e deles próprios. Nenhum treinador aconselha uma finalização de letra ou do circulo central, o que, além da improbabilidade, despreza a construção colectiva, mil vezes treinada.
Além disso, os golos artísticos trazem consigo a gratuidade e o prazer, funcionando como uma irrisão da seriedade profissional que o treinador representa. Há pouco, o brasileiro Anthony, do Manchester United, fez uma recepção perfeita, seguida de uma volta completa sobre ele próprio. Uma beleza! Mas logo o seu treinador, Ten Hag, censurou publicamente o gesto. Disse ele: «Se não houver benefício para a equipa, vou vetar». É verdade que não houve benefício, mas também não houve prejuízo, e os nossos olhos sorriram. Para quê, pois, tanta aversão à beleza e à alegria que é «jogar»? Lembrai-vos, ó gente sisuda, que jogo é um termo que deriva do latim "jocus", que significa gracejo, brincadeira, divertimento.
Chama-se «brinca na areia» a um jogador virtuoso mas inconsequente. Garrincha foi barrado antes da Copa de 58 por ser um desses, mas viria a provar que beleza e eficácia podiam conviver harmoniosamente. E os jogadores de todos as épocas lá se vão encarregando de perpetuar essa verdade. Tantos e tantos golos sublimes que perduram em nós. A memória do próprio futebol os guarda, ciosamente. Estão sempre a ser recordados, vistos, não cessam de ser marcados.
Sabemos que o mito da eficácia cobre o mundo, e o futebol, onde os treinadores são os seus gurus, mas a beleza continua a ser secretamente desejada e quando irrompe, no meio da tralha prática e utilitária, gera uma torrente de prazer. Um momento de beleza é uma alegria para sempre (John Keats).